14 de setembro de 2009

E saía de casa a correr

“Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” Estava tudo confirmado, na sequência habitual e suposta: o perfume no aparador à porta de casa, geometricamente ao lado das cartas para pagar e dos folhetos de publicidade; a chave do carro tirada da mala e enfiada no bolso direito das calças de ganga; o telemóvel topo de gama, ainda sem mensagens àquela hora; o relógio que tirou da gaveta, sem olhar, não havia dúvidas, era o terceiro a contar da esquerda; e os cigarros, quatro, apenas. E saía de casa a correr. De manhã era praticamente impossível não sair de casa quase atrasada, fazia parte do seu ritual – acordar após o despertador ter tocado sete vezes, com intervalos de quatro minutos cada, de forma a adiar o mais possível a primeira dolorosa acção do dia e levantar-se ainda a dormir e seguir directa para a varanda, nua. O choque gelado da manhã, de Verão ou de Inverno, era o seu primeiro catalisador, a primeira injecção de adrenalina obrigatória e fundamental. Sem isso era como se não tivesse sequer saído da cama. Sem isso, nem valia a pena sair da cama, porque só na varanda, a sentir o frio da manhã na pele, na sua totalidade, centímetro a centímetro, é que o dia começava. Só aí, é que a corrente que irriga o cérebro se ligava e a engrenagem circulatória iniciava o seu percurso habitual, de forma súbita e sobressaltada. O resto, seguia de forma desordenada e banal, como só acontecia àquela hora matinal e em mais nenhuma. A desordem não a adjectivava, tal como o imprevisto não fazia parte das suas preferência. “Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” E saía de casa a correr.

3 comentários:

I disse...

Há textos teus que me dão realmente a impressão de estar a ver uma curta-metragem muda. Como se todas as palavras se transformassem em imagens.

CarMG disse...

Na minha cabeça tudo são imagens. Não as dissocio uma única vez daquilo que escrevo. Acredito que visualiso antes mesmo de escrever!

I disse...

Interessante! E nota-se :-)