27 de setembro de 2009

Incisões centimétricas

Tão normal. Vivia nessa normalidade, banal e habitual de todos e de todos os dias. Nada em si se destacava por demais. Simpaticamente tímida. Bem educadamente conversadora. Mediocramente trabalhadora. Nem mais, nem menos. Apenas o suficiente para não ser conhecida mais do que os outros, nem desconhecida como senão existisse. Aquela neutralidade do café com nata no café à porta do trabalho. Da sopa com salgado no snack da esquina. Do pão e congelados no supermercado da rua. Da comédia romântica gasta no clube de vídeo do bairro. E do ritmo biológico do dia seguinte, tão igual ao anterior. Tão igual aos que ainda esperam por vir.

...um centímetro... apenas um centímetro, hoje...

E os dias corriam. E a vida corria. Não era mais feliz do que ninguém, como se os outros importassem mais do que ela. Mas também não era infeliz. Era ela mesma. Era a sua vida. Ela era a sua vida e aquilo que vivia. Que sabia viver. Que sempre tinha vivido. E, se isso não fosse vida, o que seria, então? Não o que via nos outros ou que tentava ver. Muito menos o que acreditava descortinar dos gestos, das histórias, das redes sociais. Como se isso dissesse quem os demais eram. Dizia, de certa forma, que tinham necessidade de serem traduzidos, também eles, apenas isso.

... não muito fundo... tem que ser regular, normal e igual aos outros todos... mesmo que só um centímetro...

Sentia-se confortável consigo. De dia. Vestida. Tapada. A roupa na sua função estética, que podia muito bem ser estática. Era-o. Calças e mangas compridas. A exposição insconsciente sempre a tinha assustado. Não a que parece demasiado exposta aos outros, mas a que se expunha sem consentimento ou conhecimento ou sentimento. E o conforto era o casulo improvisado ao longos dos anos. A bolha de vidros esfumados que a revestia. Que a escondia dos outros, de dia. E de si, sempre.

... quantas incisões pelo corpo? Quantas hoje? Uma... um centímetro... pelo menos um... um por dia...

7 comentários:

Lina disse...

Para quem estava quase a dormir, estavas afinal muito atenta...

CarMG disse...

Olha o ideal: ser dia enquanto estamos acordamos e, sempre que o JP aparecesse, carregar no botão e o dia transformar-se em noite! E era noite durante umas 10 horas seguidas. Depois, o dia até podia durar 48h, que não havia grande problema, mas ser noite praticamente todos os dias à mesma hora, desregula-me :P

Lina disse...

:D
Era bom, era!

Anónimo disse...

Gostei muito.
Edite Mota

CarMG disse...

Ainda bem.
Carina Gonçalves

llima disse...

este género de centímetros, somados, resultam em metros, somáticos.
:)

CarMG disse...

sintomáticos