9 de setembro de 2009

Como se fosse a primeira vez

Aproximou-se da porta, com passos de lã. Suaves. Mudos. Rasantes. Um pé de cada vez, a medo. Com medo de acordar o pó que se desviava à sua passagem. Com medo que o Mundo se apercebesse da sua presença, da sua existência. Evitava até respirar. Fazia-o com intervalos cada vez mais espaçados, de forma a não desperdiçar um único barulho, nem sequer o do ar à sua volta. A não desperdiçar o ar, sequer. A porta era logo ali. Tão ali. Já ali. E mesmo assim, tão longe, cada vez mais longe à medida que se aproximava. O êxtase. A excitação, como se fosse a primeira vez. Era sempre a primeira vez. A única. Porque acontecia, existia, mas passava. Não se repetia. Nunca se repetia. E cada nova vez era uma nova aventura. Isso mesmo, aventurava-se cada novo dia numa nova aventura. E cada dia se sentia mais inebriado, ébrio perante a ferocidade dos seus sentimentos, das sensações que lhe causava - das físicas. A porta. Os sons. O barulho. Os nervos. Os tremores. A ansiedade. A descoberta. O ser descoberto. E a coragem para lá chegar. Já rente, a sentir o cheiro cáustico do suor das mãos entranhado na madeira da porta. Simétricas. No mesmo local milimétrico onde a erosão tinha desenhado o leito da mão. Da sua. Suada. Sapuda. Servente do vício. Parado. Os olhos impenetráveis. Fixados, não se desviavam enquanto a mão, a mesma, rugosa, usada, depravada, abria o óculo da porta. Estático. Era aí que ficava. Estático a ver as pessoas passar na rua, nas suas vidas que aglutinava como dele. E ali ficava com uma lealdade religiosa de confessionário. Com uma depravação obstinada de filme pornográfico. E deglutia. A saliva pela garganta seca. E deglutia. A passagem dos transeuntes. Efémera. Pelas suas mãos. Molhadas. Pela sua vida. Vazia. Mas só dele. E em nada dele.

2 comentários:

llima disse...

tens mão para a coisa, é evidente.
Gostei muito

CarMG disse...

Tenho uma mao esforcada, isso sim.
Este tambem é dos meus preferidos, se me é permitida a clausura da modestia.