6 de julho de 2009

Maria.
Nome comum, vulgar, habitual, usual, Português. Dedutivo. Presumido.
Maria subia as escadas. Vagarosamente. Degrau a degrau, subia as escadas. As mesmas de sempre. As de todos os dias. Não precisava de as contar, sabia-as de cor. Uma atrás da outra. Os desníveis. As falhas. As pedras soltas. De cor. Mas mesmo assim, contava-as. Uma atrás da outra.
Setenta e três no total.
Ia na vigésima quarta.
Ao colo trazia dois sacos. De papel. Como nos filmes americanos. Um à esquerda (ou no lado que assim denominam), outro à direita (ou no lado que assim chamam). Papel pardo, crepe. Grosso e duro. Mas papel, apenas. Abraçava os sacos como duas melancias, mas com uma mão por baixo, não se fossem rasgar. Nos filmes costumam ser resistentes. Mas não se fossem rasgar.
Ao ombro levava a mala. Grande. Enorme. Exagerada. Com a vida lá dentro, como de resto o está em todas as malas. Grandes. Enormes. Exageradas.
Trigésimo sétimo degrau.
O final do dia estava quente, um pouco húmido. Apesar do Verão, o céu estava carregado de núvens cinzentas e opacas. Estava húmido. A respiração ofegante a cada degrau, difícil. Ruidosa. Na mala estava um maço de cigarros. No fim. E uma caixa de fósforos vazia.
O degrau quarenta e cinco era o do desnível. Nada fácil com saltos altos. Mesmo com os de cunha se tornava difícil. Mas Maria já conhecia as escadas e, com um esforço extra, catapultou dois degraus de uma só vez. Mesmo com as compras americanas em cada braço. Mesmo com a vida ao ombro. Enorme.
"Boa Tarde, Maria"
"Boa Tarde, Manuel"
José era um nome mais comum. José e Maria fariam o par perfeito Português. Mas era Manuel o seu nome. Manuel apenas. Todos os dias se cruzavam entre o trigésimo quinto e o cinquagésimo sexto degrau. Hoje tinha sido mesmo no limite: cinquagésimo quinto!
Manuel, tão Português quanto José, saía do trabalho sempre à mesma hora. Picava o ponto, como se dizia. Pontual. Tanto para entrar, como para sair. Percorria as mesmas pedras da calçada todos os dias. Uma após a outra. Uma atrás da outra. Conhecia os seus desníveis. As falhas. As soltas. Mas não as contava. As certezas não se conferem. E as pedras, tão certas eram como o ponto que marcava a entrada e a saída. Todos os dias.
Maria, a mesma, sorria e dizia "Boa Tarde, Manuel". Manuel corava e, ao desviar o olhar, dizia "Boa Tarde, Maria". E o dia seguia. Da esquerda para a direita, como os ponteiros do relógio. As casualidades da vida, a par com a sua constância, a sua normalidade habitual e pontual, conferem-lhe o conforto da segurança. A segurança de saber que, até ao cinquagésimo sexto degrau, o sorriso do sol pôr apareceria, bem como a certeza que, no dia seguinte, continuaria a ter motivo para sorrir.
E Maria seguiu. Seguiu e sorriu. Com a américa ao colo e o Mundo ao ombro. Sorriu ao subir o último degrau, o que a levaria à sua realidade do dia-a-dia. E sorriu ao tropeçar no septuagésimo terceiro e ao ver as compras rebolarem escadas abaixo. As que tinha acabado de fazer acima. Mas era para baixo que as compras iam. Abaixo a fugir da realidade. E Maria sorriu. Sorriu para as compras que seguiam o caminho e as pisadas e as pedras daquilo que queriam. Seguiam quem descia.

Sem comentários: