31 de dezembro de 2009

O Rapto da Europa

Ainda acordada, é certo. E normal… mas como estar a dormir quando um ano inteiro nos está a escorregar pelas mãos sem que nada possamos fazer? Estico-as, a elas, às mãos, para agarrar o tempo que voa e escorre por um muro invisível de titânio. Não sei se o agarro, a ele, ao tempo… se derrubo o muro… As mãos são duas. Os pés, outro par. No total, insuficientes para decidir a vontade e direccionar a acção estática e latente que, adormecida, olha de soslaio para o querer indeciso.

Mas o tempo não pára! Chamei-o por mais de uma vez. Gritei-lhe que não fugisse. Um ano inteiro com tanto para contar e desaparece, assim, à minha frente, por detrás de um sem par de números em nada aleatórios. Vejo os minutos a passar no relógio e assusto-me ao saber que não mais os irei ver… um ano inteiro decorrido… quantas e quantas historias? Quantas e quantas… coisas por contar? Quantas… por decidir? Mais ainda…

A etapa é irreal. O limite psicológico. A barreira… fisiológica… com tão pouca lógica… A soma, o total transbordam borda fora. Juntam-se ao mar, aos oceanos, às galáxias e ao vento e navegam numa memória que turva a água com tempo. Porque nem ela fica. Esbatesse a Carand’ache húmido num papel usado. Uso a mão para guardar o que Rubens ousou raptar. Uso o poder de opção para adiar… mais ainda.

28 de dezembro de 2009

as if...

como se ondulasse num baloiço ao sabor do vento e das marés. baloiço de fio grande, de prumo, pendurado sob um tecto de nuvens que se movem, tal como ele, ao sabor do vento mas ao invés. instável e inconstante como um louco, que vive no limiar da realidade, que diz o que os silêncios calam e que não se esconde nos limites do dito e não dito. louco como o vento que brame e zurra, que não tem consciência nem pesos nem e ses. e se o vento soprar de feição? e se a inconsciência meteorológica cair que nem chuva torrencial, como hoje? e se os trovões e relâmpagos em nada clareassem a mente, mas mente... à luz da clarividência não assumida. mas a luz não brilha assim... como se o baloiço, louco de velocidade, louco de verdade assomasse à porta, descesse as escadas e fosse, simplesmente fosse. louco de vontade. louco de liberdade. e o vento e a brisa e os mares, como se. e se. as if... na incondicionalidade do sentir. na inconstância do querer. no inconformismo do decidir.

24 de dezembro de 2009

A importância de se saber viajar!
De se permitir a si mesmo experimentar o Mundo, descobrir a Vida para lá da vida que se conhece.
A inconstância como antagonista da (a)comodação tão (in)cómoda.
Veículos facilitadores da auto-percepção da (in)finitude dos limites, intrinsecamente ligados aos desejos, às vontades.
Quantas camadas temos, cada um de nós, na nossa mala de viagens?

23 de dezembro de 2009

É na ausência da inexistência do pensar que o gelo começa

É na ponta do pé que o gelo começa. No pé direito. No dedo grande, não no pequeno, demasiado insignificante. Demasiado insensível. Dedo grande, gordo, direccional. Para cima. É para onde o gelo corre. Trepa. Em subida ascendente para o centro anómalo. Sobe que nem formigas carnívoras e devoradoras. Das vermelhas. Grandes como o dedo. Frias de sangue digerido. Como o medo. Trepam cada vaso, cada músculo, cada tendão, cada ligamento e ligam as extremidades distintas numa homogénese gelada. Congelada. Com nada a não ser a insensibilidade do frio…

É no peito que o gelo se instala. É no gelo que o peito se cala, submerso na profundidade da consciência. Ou na ausência da existência do pensar… picador de gelo, como no filme. Martelo pneumático que não quebra a pedra feita lava nem lava as lágrimas que escorrem, quentes, para afastar o frio. Pedra fria e consistente que na dureza da frieza sente e mente. Pela ausência, de novo. Pela consciência, de velha. Pela inexistência, de si mesma …

22 de dezembro de 2009

Foi ontem, o de Inverno

Chamar-lhe ficção e transformá-lo em algo pessoal e transmissível, com a segurança da incerteza da leitura alheia.

Maçã e Canela - O Livro

Os sonhos encontram-se mais distantes quanto menos lutarmos por eles!

A minha amiga Catarina sonhou com um livro e não é que ele nasceu?


19 de dezembro de 2009

Nu

Quero-te nu. Sim, nu. Nu! Tal como vieste ao mundo. Nu. Tal como sempre te imaginei: nu. Deixa a camisa, o cinto, o relógio, os boxers, as calças, as meias, o casaco. Deixa tudo e despe-te. Descobre-te como na forma primordial. Nu. Para eu te descobrir, o tal. Fica a roupa na pele, mas sai o cheiro. Esfrega-o com limão para ficar neutro. Empurra-o com a mão para que evapore. Bebe-o para que não se perca e se transforme. Nu de histórias e contos, pespontos mal alinhavados, desalinhados que nas pontas ficaram soltos. Nu de querer e sentir. No fundo, de fugir. Nu de vícios e virtudes, das vicissitudes e amarguras. Das agruras e da vida. Desnuda-te e fica estéril. Sem cor. Dor. Ou odor. Asséptico de hermético. Azul do sabão. Limpo de exaustão. E assim, sem nada saber, querer ou contar, recomeça. Do vácuo. De frente, para que te veja, porque te quero ler.

Intuição

(tu-i), s. f. conhecimento directo e imediato sem recurso a raciocínio; percepção clara e pronta; primeira vista; pressentimento; visão beatífica; -empírica: a que tem por objecto factos da experiência externa (-sensível) ou interna (- psicológica); - racional: a que tem por objecto relações (de semelhança, da causalidade, axiomáticas, etc..); - metafísica: a que tem por objecto os seres, quer na sua existência, quer na sua essência (o Eu próprio, Deus); -inventiva, divinatória, ou prospectiva: a que nos faz pressentir a verdade. (Lat. intuitione).

15 de dezembro de 2009

Finas e cruéis da vingança gelada e sádica

Quantas vezes tinha passado por eles sem os olham. Sem, sequer, fazer um esgar. Uma mirada. Um olhar de soslaio. A alta velocidade. Em excesso de potência. Do ver. Do esquecer. Quantas vezes tinha decidido que não iria mais passar por aquele mesmo sítio. O que havia a provar em todas as vezes? Em todos os dias a que se sujeitava à mesma provação? À mesma privação. À mesma emoção… Na mão, era onde os imaginava… da imaginação, era donde não saiam… As memórias marcadas a cicatriz pelo corpo abriam-se como um fogo constante e acutilante. Os bordos, nunca totalmente unidos, afastavam-se com o ardor. O calor… insuportável no pico do Inverno. Angustiante no clímax do Verão.

De braços e pernas atados. A força da defesa e da fuga. Em vão. O pânico do que se sabia. Do que se seguia. E a ausência. Off…

Bonecos de cristal. De todas as formas. De todos os tamanhos. De todos os feitios. Mas sempre de cristal. Azul-transparente. Azul-brilhante- Azul-penetrante. As formas arredondadas, finamente trabalhadas, milimetricamente sentidas a cada centímetro de área corporal. Mutilada. De forma laboral. Artesanal. A peculiaridade dos detalhes. A arte. A dor. As arestas. Os picos. Os arabescos. Os rendilhados. Perfeitamente colmatados.

Na mão, era onde os imaginava. Um a um. Um por um. Sem restar nenhum. Na mão. Esmigalhados. Esborrachados. Espezinhados. Crucificados. Mastigados. O sangue escorria a gotas seguidas e constantes. O quente catársico da viscosidade vermelha escura pelo corpo abaixo. Pelo corpo de baixo. O manto eritrócitario que cobria o corpo que restava, agora sem nada para atar. Agora sem nada para mutilar. Mutilado estava. Em fatias. Finas e cruéis da vingança gelada e sádica. O sangue do corpo… não havia mais. O da mão, que escorria, chegava para libertar todas as mágoas, todas as histórias, todas as mutilações infligidas durante anos por bonecos de cristal danificados. Afiados como um diamante penetrante. E penetravam. De forma missal em tudo o que não era visível. Apenas sensível.

Restou o corpo inanimado de sangue pintado de cristais adornado.

Provou a mão que ficou da fúria trespassada de vitória conquistada.

Ficou na montra da loja um resquício de um tempo passado.

Guardou na cómoda a vingança sólida, fatiada e extirpada do presente…

De novo a Ousadia

De novo a ousadia, a olhar fixamente para mim. Olhos nos olhos. De forma intimidatória. De forma provocatória. A retina, redonda, profunda até à medula. A íris, reluzente e enérgica, cheia de viva. A pupila, não contraída, dilatada a emanar uma fragrância desconhecida até então. A ousadia penetrante. Invasiva que me invade a espaços regulares. Que roça e rasa por mim sem a sentir, mas sabendo-a lá. Fixa. Constante. Discreta. O ousar pensar que lhe posso resistir e fugir. Como se fosse possível… De novo, a mesma. Ousada. Usada. Sadia de querer e saber. Que ao toque e ao cheiro o galope do coração não bate: voa! Longitudinalmente. Paralelamente ao verticalismo do desejo. Ousaria negar-lhe o direito de se transformar em tentação? De impedir uma aproximação? Tentar-me-ia a sair do escuro e a tocar, não com os dedos: com a palma e com a mão, no movimento? Na ondulação? Ondulo sem náusea no pêndulo de Foucault e rodo com a Terra, de olhos fechados. Ouso sentir o seu interior. Quente. Ardente. Com lava incandescente que escorre e cria vida. Nova. Renovada. Reciclada. Cíclica de sílica. Cínica de idílica. E olhou fixamente para mim…

11 de dezembro de 2009

Ousadia

Sair da sombra do sofá! Ousar afastar a manta quente e cómoda e meter os pés no chão. Ousar sair para a rua, descalço. E correr sobre a erva fria, gelada e molhada do orvalho da noite. Escorregadia por debaixo dos pés. Mas deixá-la escorregar enquanto ainda estão quentes. Enquanto a chuva que cai não os resfria. Ter a ousadia de ousar e dar um passo em frente, mesmo de olhos vendados. Mesmo de olhos fechados. Mesmo de pulsos cerrados. Aceitar as consequências como se de um ramo de flores se tratasse. Umas mais florais que outras. Outras com mais picos que umas. E não se picar porque não se tocou. Porque não se tentou. Eles, os picos, estarão lá, na mesma. A consequência de não te ser picado… foi o não ter tido a sorte de ter sido tentado. A única tentação, foi a de nada fazer. E apenas ficar a ver. A tentação do outro lado da estrada. Do outro lado do rio. Do outro lado da vida. A inocência da descoberta. De tocar (com a ponta dos dedos). Porque se ousa. Porque se tenta. Porque se quer. A ousadia de tirar a roupa no meio da rua e gritar como um louco. A loucura ousada de sair e dar beijos e abraços a toda a gente. A sanidade louca de dizer: não. Não quero. Mais. Porque ouso ser feliz! Com toda a loucura insana da ousadia.

9 de dezembro de 2009

Ousar

v. tr. atrever-se a alguma coisa; ter a ousadia, a coragem de; empreender. (Do lat. ausu)

7 de dezembro de 2009

Com a ponta dos dedos

Dedilhando com a ponta dos dedos como que para descobrir o território. Demarcar os limites visuais com o tacto. Com a ponta dos dedos. Identificar cada falésia, cada lago, cada montanha, cada recife. Aglutinar a geografia irregular no conhecimento pleno e cego. Do tacto. Da ponta dos dedos. Tactear cada recanto escondido que visualmente não se manifesta. Doar a sensação do toque, intermitente, deslizante, instintiva como única dádiva sensitiva. Sensível. Quase invisível. Com a ponta dos dedos, aprisionar o momento numa polaroid a pionés cravada no corpo. Várias vezes. Repetidamente. No corpo. Cravada. Perscrutar o resultado na palpitação do pescoço, jugularmente. Obsessivamente. Com os lábios. Molhados. Quentes de saliva não digerida. Como a sensação. Como a ilusão. Partilhada. Pela ponta dos dedos, trocar de mão. Guiá-la pelas estrelas. Fazê-la seguir pela Estrada de Sant’iago, como os navegadores que, sem medo, ousavam. Ousar tocar com a mão... e devolver... o toque... com a ponta dos dedos.

5 de dezembro de 2009

Cheiro de quem o sente na ebulição dos estímulos olfactivos

Assim, entranhado nos mesmos cantos redondos da memória. Nos caminhos olfactivos que conduzem ao estômago estimulados a pequenas descargas eléctricas. Constantes. Persistentes. Não obedientes. Mas intensas… Lá, no estômago, onde tudo se sente. Onde tudo se recorda. Onde tudo se vive, é onde fica. O cheiro. O aroma. O perfume. O ritmo. O compasso. O astrolábio que sabe os cantos, os redondos, de cor. De olhos fechados. Com o tacto. Com o desejo. Com o vício. Com a arte. Assim, eternamente entranhados. Nas entranhas cravados, os cheiros. Os aromas. Os perfumes que nos rodeiam. Nos agarram. Nos paralisam. Nos transformam… que tanto nos deixam a contemplar as estrelas, aquelas, as da noite, quando à noite… como nos desce ao quente do Inferno, de Dante. No levante dos pensamentos. Lá, a jusante, para onde estendemos a mão, enquanto a outra, retida, guarda o estômago, para que nada fuja e tudo sinta, na ebulição dos estímulos olfactivos…

2 de dezembro de 2009

Loucura de quem a vê

Chove. Não torrencialmente. Loucamente. Daquela maneira desordenada e sem sentido que a chuva tem. Multidireccional. Opcional, à sua escolha, só sua. Desordeira. Chove ao contrário. Chove de baixo para cima. Diria mesmo que me chove em cima. Vejo as pedras a subirem em direcção ao céu tal a loucura descontrolada. Desgovernada. Desamparada. Da chuva. De quem a vê. E das pedras, que sobem sem ter onde chegar. Sem ter onde cair. Salmões sem ter onde desovar. Pedra-peixe sem ter de quem cuidar. Amar. Louca sem querer. A pedra. Louca por chover. O peixe. Louca para saber onde vai parar. A chuva. E quem a vê. E chove cada vez mais. Chove tanto aqui dentro… ainda bem que lá fora está Sol!

30 de novembro de 2009

Nudez sentimental


Nudez sentimental, a tal

Uma cadeira no palco vazio. Uma daquelas altas, de bar, pretas, sem apoio de costas. Daquelas em que nos sentamos temporariamente. Por um tempo. Para dar um tempo até avançar para algo mais. Mas tinha que ser assim. Apenas um apoio. É o que é necessário numa altura dessas. Ninguém se sente confortável quando confrontado com a ausência de roupa. Não física. Imaterial. Não palpável. Não real. Aquela roupa que nos protege, não com tecido, mas com silêncio. Com omissão. A nudez sentimental, a tal, nunca é confortável. Nunca de início. Nunca quando exposta. Nunca com público. A física, a outra, mais fácil. Mais dada. Mais ousada. Menos pessoal, do que a tal. O palco é frio, tal como o silêncio que ainda não se instalou. O burburinho que zumbe na cabeça são abelhas atordoadoras. A exposição consciente… dura. Pedra. Mármore. Aço. Titânio… nunca poderia ter sido algo aconchegante. Como ficar-se sentado e impune sem ser em posição de fuga. Alta. Sem apoio.

Uma peça de cada vez.

O streap tease é de histórias. De actos. De acontecimentos. De relatos. Primeiro sai o casaco. Já tinha ficado no chão logo de início, com o convite, na entrada, na porta. A blusa, de malha, com falhas, rota, rasgada, suada, chorada: desfez-se! O resto? A saia? As meias? As ligas? Os sapatos? O soutien? As cuecas? Saíram sozinhos. Sem ajuda. Sem mãos. Sem acção. Sem intenção. Saltaram como lava incandescente. Ardente. Penitente. Resiliente. Ficou o corpo. E o vazio. O mesmo silêncio. E tudo aquilo que podia ter sido dito se a nudez fosse das palavras e não dos sentimentos.

29 de novembro de 2009

28 de novembro de 2009

24 de novembro de 2009

a vida presa no tempo presente

como é que se conheceram?
da maneira que toda a gente se conhece: a falar. Existe outra maneira de conhecer alguém?
existe… olhas, cheiras, sentes, tocas… saboreias…
falámos durante três dias seguidos. Se-gui-dos. Sem dormir. Sem tomar banho. Mal comemos. Tínhamos tanto, mas tanto para falar, que o tempo não dava para mais nada. Pareceram-me apenas três horas. Nunca apenas três dias. Se-gui-dos. Cada minuto que passava era como mel para os meus lábios. Cada palavra dita uma ode ao momento. Cada suspiro, vida.
foi por isso que partiram?
sim, partimos. Sem parar de falar. Para poder falar. Fomos. Se-gui-dos. Seguimos sem rumo. Sem direcção. Sem objectivos. E continuámos a falar e a andar. E seguimos.
seguidos?
se-gui-dos… perseguido pelo mundo que deixámos para trás. Pela realidade persistente. Insistente que não nos deixava sonhar e voar como queríamos. Pela actualidade acutilante que gritava a cada canto que a pausa se estava a esgotar e que a vida, a nossa, se seguia, não ali, mas lá atrás, onde a tínhamos deixado. No tempo presente.
não era o presente que viviam?
nunca foi. O presente sempre foi o que os outros esperavam que vivêssemos. O aqui foi a outra dimensão que criámos, o botão da pausa que encontrámos e usámos. O aqui foi onde nos foi permitido sonhar sem amarras. Divagámos. Navegámos. Bailámos… Sonhámos. E saboreámos tanto!
durante quanto tempo?
pouco. Demasiado pouco. Menos do que queríamos. Mais do que alguma vez sonhámos. Mas sabes… as coisas boas, são seguidas, se-gui-das por nós enquanto delas nos lembrarmos. Enquanto por elas suspirarmos. Até que um dia, se acomodam confortavelmente num qualquer canto redondo da nossa memória e dão lugar a outras histórias.

23 de novembro de 2009

Fora do corpo: outra

O som da madeira. Velha. Gasta. Rabugenta. Conheço-o melhor do que a palma das minhas mãos. Os nós, os veios, os desgastes, os riscos. A linha da vida do amor da saúde e do dinheiro. Não sei onde estão. Não sei se apontam para Sul ou Norte, ou se se desnorteiam. Como eu. Sentada em cima do cata vento rodopio até ficar tonta. Inebriada. Alcoolizada. Vexada. Ao segundo degrau sei perfeitamente onde estou e volto a mim com a rapidez da inconsciência do éter. O crack não é da droga, é do vício… crack crack à medida que subo os degraus. .. crack crack só mais um vez… Sentada nas escadas. O desgaste não é dos pés com anos nem do peso com pessoas. É de mim. De todas as vezes que pensei aqui vir. De todas as vezes que a vontade por mim passou e aqui se sentou. Neste degrau. Ao som desta madeira grave. De todas as vezes em que não passei da porta. Com o cheiro desta madeira usada. E das outras em que cheguei a entrar. Hoje não ouso passar daqui, deste degrau. Deposito aqui o meu corpo sem vontade nem querer. Acho que o vou deixar aqui e me vou embora. Fica a aguardar a oportunidade. A guardar-se a si mesmo. Quando tiver coragem, voltarei para o vir buscar. Visto-o se assim me apetecer e aí, talvez suba e entre. O corpo é o mesmo. O sítio também. O quarto, idem. Eu, é que já não.

20 de novembro de 2009

Corpóreo

Sinto-te assim. Dormente. Insensível em toda a tua extensão. Quilómetros de ti que não sinto. Poros pelos células escamas pó. Todos lá menos tu. Pele que és. Corpo que é meu. Invólucro da minha bagagem. Tela branca pueril. Em todas as tuas tatuagens sinto-te o cheiro. São minhas. Em mim. Corporificadas. Desenhado a dedo o perfume. Os aromas. Tatuados os toques que não chegam a tocar. As histórias que roçam sem nada me contar. Vejo todos! Os mares e oceanos. As tempestades ciclones tufões ventos fortes tsunamis de emoções. Vejo o quente do Sol-pôr. Corpo meu que me mente. Corporeamente. Não sente. As cicatrizes de todos os que conheci. Em mim. Lá. Ausentes. Caminhos de terra batida. Carreiros. Cortiça marcada a cal. E a escopro. Calmamente. Eternamente. Corpo meu. Corpo mente. Pele livro. Livre. Pele vida. Viva.

18 de novembro de 2009

"...só existe uma comunicação universal autêntica:
a troca dos corpos pela linguagem secreta dos signos corporais."
...
in
A Moeda Viva, pg 67

16 de novembro de 2009

Corpo

s.m. porção distinta de matéria; parte material do homem e dos animais; cadáver; parte do vestuário que cobre o tronco; corporação; divisão de um exército; classe de indivíduos da mesma profissão; consistência; grossura; densidade; altura do tipo de imprensa; espessura do papel ou do tecido; parte principal ou mais volumosa de um organismo; órgão, objecto; edifício. (Lat. corpu[s]).

15 de novembro de 2009

Não é perfeito

Tem imprecisões e indecisões como os outros. Baixos relevos e altas altitudes. Amiúdes. Rugas e viscosidades. Pelos e peles. Entre eles. Nem ao toque. Frio quando longe. Quente quando quase. Estranho quanto baste. Nem ao cheiro. Sempre a fugir levado por qualquer sopro. Sempre menos com inspirações a mais. Cheirado pelos demais. Quais? Nem ao olhar. Demasiado real. O olhar é superficial. Só na imaginação. Está ali, à mão. Preso por fios de marionetas manipuladas por outras. Enfiadas em histórias do querer e do sentir. Não é perfeito. Nunca é perfeito. Apenas meu... teu... deles...

12 de novembro de 2009

My... Your... Theirs...




... Secret Body...

11 de novembro de 2009

Uma mão a mais

Não. A porta não abre. Bato. Loucamente. Empurro-a com força. Torno a bater. Rodo a maçaneta. Tento em vão colocar a minha chave na fechadura. Nem isso. Claro que não. A chave não é de lá. A forma não encaixa com a forma de uma outra chave que não aquela que eu tenho. Bato de novo. Nada. Desço as escadas em passos acelerados. Preciso de ir à rua. Oxigénio-vida. Oxigénio-carburante. Oxigénio-dependência. Inspiro-o em longas golfadas. Longas e lentas. Longa e lentamente. Volto. Impossível não voltar. Resistir… Subo de novo as escadas. O barulho da madeira é ensurdecedor. Térmitas sobem pelas minhas pernas para construir em mim o muro que me faça parar. As aranhas, as outras, estão lá. Vigís. Atentas. Prontas. De novo na porta… quero entrar e não consigo. Tanto… Sinto o cheiro à distância. Persegui-o escadas acima. Estava lá a cada degrau. Na minha cabeça. Seria tudo tão fácil se a porta se abrisse. Sei o que lá está. As histórias. O sofá. O quadro. As teias. O cabelo. As conversas. O mar. As paredes brancas. Alguns sonhos. Outros pesadelos. As Horas. Estico a mão. Lenta e longamente. Desmaterializo-me em partículas e trespasso a porta. A mão. O braço. O peito. A perna. A anca. A barriga. Eu-membros transporto-me porta adentro. Eu-órgãos fico do outro lado… o vazio… o opaco… Estou lá e não estou. Vejo mas não toco. Se toco não sinto. Se sinto é porque não sou Eu. O vento entra pela janela aberta. Dispersa o Eu-partículas. Disperso-me pelo cubo transparente. Partículas de mim perdem-se pelas brechas da madeira. Acho outras. Colecto-as. A saliva o sangue o suor as secreções. O meio para as colar. Juntas. Novas. De novo. Diferentes. As minhas e as outras. Trago uma mão a mais. Esta, tem a chave…

9 de novembro de 2009

Memória do corpo que já não o é

Faz como no filme. Estica o teu braço em direcção ao peito. Desta vez ao teu. Agarra o coração com a mão e arranca-o lá de dentro. Puxa-o até se soltar. Até os vasos e os músculos e as artérias e os tendões se rasgarem, um a um, com aquele barulho oco de quem já não tem nada, nem vida. Agarra-o com força, espreme-o até veres o sangue pingar. Por ti. Escorrer por ti, molhar o chão, pintar a tapete vermelho o que te sustenta. O que te mantém em pé. De pé. Olha-o. Vê se o reconheces como outrora foi. Vermelho paixão. Vermelho sonho. Olha-o pela última vez, porque já não é o mesmo. Nem nunca voltará a ser. Quente. Arredondado. Auriculado. Encarnado rosado. Roxo cianosado. Ainda está quente? Vai deixar de estar… toca-lhe com os lábios. Arde? Onde? No estômago… Agora dá-lhe uma dentada. Morde-o. O sabor metálico do sangue transpira-te. Saboreia-te. Os teus dentes correram por ti abaixo. Fogem de ti como se tivesses lepra. Não são mais parte de ti, nem nunca foram. Sem coração, agora pedra. Sem dentes, agora livres. Derrete-se cada pedaço teu, sem ti, porque o deixas-te de ser há muito… corpo fundido com a terra ausente… sombra contra o Sol inexistente...

... desesperadamente

É sempre assim que vocês chegam. Passinhos de lã. Calados pela calada. De preferência pela madrugada. Assustada. É como eu sempre fico. Sempre…
De início, oiço-vos à distância. Um murmúrio. Uma brisa cantada. Um sussurro. E eu... assustada. Não consigo desligar. Não vos consigo calar. E o volume aumenta. Tal como a tensão. E a exaustão…
Voz após voz e eu tremo. Não domino mais as pernas que vibram. As mãos que suam. O peito que derrete. Dormente. Noite após noite o ritual. A sensação sem igual…
As vozes multiplicam e ganham vida. Mais de mil. À minha volta. E falam e gritam e cantam e berram e alteram cada sinopse da minha cabeça. A vil incerteza…
Não sei quando ficam ou não. Quantos são. Quando vão. O tempo diluído em relógios na mão de Dalí. E eu aqui. No escuro. No canto. No chão… desesperadamente.

29 de outubro de 2009

Muros invisíveis que se tornam reais

Não se agarrou a ela com força. Agarrou-a com força. Com toda a força. Com a que tinha fermentado. Potenciado. Agarrou-a com o desejo mais profundo de nunca mais a largar. A ela. À sua força. Com toda a força que dispunha. Que conseguia gerar dentro de si, de si para si. Para ela. Como se fosse a última vez que a agarrava. Que a tocava. Que a sentia. Agarrá-la daquela forma simbiótica e universal que, de forma transversal, atravessava o seu pensamento mais longínquo. O da finitude. Do fim. Conjunto. Ela. Ali. Tão perto. Tão sua. Tão só. Só de olhá-la não a conseguia largar. Agarrá-la era a única opção. Agarrá-la e prendê-la a si. À sua vida. Na sua vida, foi onde o muro se construiu. Elevou-se. Ele. O muro. Com vida. No meio. Da sua casa. Dos seus braços. Dos seus abraços. Agarrá-la pelos braços. Os dedos crivados a lágrimas, frias. Profundas. Nos braços. Finos. Seguros. Decididos. Impelidos de continuar. De abraçar. Os braços. Os abraços. Ele. Neles. Agarrá-la para torná-la real. Para o sentir. A ele. Aos seus braços. Baços. Sem vida. Deles. Para a sentir. De novo. Para sempre. Sua.

Não a agarrou com força. Agarrou-se a ela com força. A sua força.
"A humidade de lágrimas no rosto mentiroso. Abraçou-a. Ela agarrou-se a ele com força. Ele deu-lhe palmadinhas nas costas, porque lhe tinham dito que isso evocava em toda a gente a reconfortante recordação do bater do coração na mãe dentro do útero."
...
Robert Wilson
in
A Ignorância do Sangue, pg 164

28 de outubro de 2009

Tejo Remy


ser autosuficiente nada tem a ver com dinheiro

Viajar

Para viajar não é preciso andar de um lado para o outro, basta olhar”, dizem. Pois bem, please, take your seats que a viagem vai começar!

O Sítio. É importante? Sim, mas não fundamental. O prazer de se viajar é algo inato. Está acoplado ao prazer da descoberta, ao gosto de se verem coisas novas, diferentes ou não das nossas (vindo essa conclusão à posteriori). Podemos dizer que, numa escala hierárquica, O Sítio, vem em segundo lugar, já que em primeiro, como é óbvio, vem O Viajante. Sem ele, não há viagem! Escolhamos O Sítio, então… Aeroporto? Que melhor sítio para se viajar, mesmo que não se saia da cadeira? Um internacional. Heathrow or Frankfurt! Grande. Cosmopolita. Movimentado. Multicultural. A multiculturalidade é dos aspectos mais interessantes para se viajar num aeroporto. Se não mesmo, O Aspecto Mais Interessante! Em que outro sítio temos a possibilidade de ver pessoas físico-culturalmente diferentes de nós? …o Martim Moniz não é, de certo, resposta… (pobre Martim Moniz, deve andar às voltas na campa…) Quanto maior uma cidade, mais desenvolvida económica e culturalmente, maior é o interesse que o seu aeroporto suscita. E não é só a cultura, física ou não, que transpira de todos aqueles que por nós se cruzam, enquanto viajamos sentados numa qualquer sala de espera. São os pormenores. A diferença. A especificidade. Os cheiros. As cores. O modo de estar. A educação… tanto, tanto… um doce para um olhar atento!

Mudando de objecto-sítio: Viajar sozinho numa esplanada. Café com Bica. Bom tempo. Telemóvel, na falta de um livro ou jornal, para não parecer que se está sozinho. E olhar. E apreciar. E ouvir as conversas alheias. E ver como os outros se movimentam. Como mexem as mãos. Como arranjam o cabelo, daquela forma inconsciente e nervosa. Como seguram o cigarro. Como olham por cima dos óculos. Como andam. Como se balançam. E, novamente, olhar. Assimilar. Viajar.

Mesmo viajando onde se conhece, ou onde se pensa conhecer. É sempre uma viagem nova. Porque os nossos olhos mudam. Tal como nós. Tal como os outros. Tal como tudo o que nos rodeia e que vemos. E olhamos.

E a música, banda sonora de qualquer viagem… por favor… que esteja de acordo… e não é que está?

27 de outubro de 2009

Viagem

s. f. acto de andar para ir de um lugar a outro mais ou menos distante; jornada; navegação; descrição do que se viu ou aconteceu durante um passeio ou jornada; percurso; última -: a morte. Cf. viajem do v. viajar. (Prov.-cat. viatge, do lat. viaticu).

Mais leve mas mais cheio

Era viajante. Apenas isso. Nem loiro nem moreno. Nem bonito nem feito. Nem alto nem magro. Viajante. Apenas. Os adjectivos visíveis eram insuficientes, nada abrangente, reticentes. De tal maneira aculturado fisicamente pelo Mundo, que se torna impossível adjectivar. Olha-se. Mesmo que com atenção. Os traços físicos são montanhas. Os estéticos, lagos. As feridas e arranhões, vulcões. Os adereços, monumentos. Na cabeça, histórias. Na mochila, a vida. Imensa. Plena. Cheia. Não de coisas. Não de peso. Da mochila desenrolam-se negativos de todos os lugares por onde passou. Das gentes das cores dos sons dos cheiros dos sabores. E transporta-se, qual nómada, de lugar em lugar. E distribui-se, qual vendedor ambulante, de pessoa para pessoa, tudo o que se viu e sentiu. E dá-se, a si, aos outros, e dá, mais e si, a todos e transforma-se a cada nova viagem. Apenas isso. Viajante. Mais leve mas mais cheio.

23 de outubro de 2009

Faço-o para não ter que o fazer em necessidade ou desespero. Faço-o porque preciso. Faço-o para não ter que precisar.

Sempre que passo por aqui. Por este sítio. Por esta rua. Por estas escadas. Por esta porta. E vejo o desenho da luz reflectido no chão como sombras chinesas pintadas a guache, tenho que entrar. Sempre o mesmo sítio. Sempre a mesma rua. Sempre as mesmas escadas. Sempre a mesma porta. Sempre Eu em busca do mesmo sofá. Tive que voltar cá. Aqui. Por mais que procure, não existe outro como este. O conforto das coisas que conhecemos. Daquilo que podemos palpar de olhos fechados. A segurança do que sabemos ir encontrar. A descoberta. De nós mesmos. Aqui. O desconforto da nudez sentimental destapada por palavras monossilábicas. O chão volátil que flutua por baixo dos pés, como que a fugir. Como que, para não fugir. A rede sem malha que desprende as lascas agarradas às paredes. Uma a uma. Fagulhas incandescentes queimam, incrustadas na pele. Mas só aqui. Neste sofá. Dentro deste cubo. Transparente para fora. Opaco para dentro.

porque quem me conhece sabe que sou incapaz de não partilhar aquilo que faço com aqueles que gosto

E eu gostava que carregassem no título!

19 de outubro de 2009

Criaturas

Criaturas. Fantasmagóricas. Alteradas. Assustadoras. Feias. Decrépitas. Bonecos de fazer sorrir transformados em personagens de filmes de terror. A Branca de Neve, púdica, engasgada com a maça da bruxa má, no chão, despojada de vida mas não de pudor. Coelhos grávidos que não correm atrás de Alices, mas que fazem outros, infelizes. Massacrados. O lobo que não come o Capuchinho Vermelho, antes, é comido, devorado. Histórias ao contrário. Antónimos dos contos. Do avessos. Macacos simpáticos de circo, a rastejar, feridos, pelo chão. Ensanguentados. Estripados. Incestos duvidosos. Ares angelicais a par com a fealdade do ser, mais interna ou exposta. Ali. Figuras do imaginário infantil transpostas para os adjectivos adultos. Recalcamentos alheios em telas. Gigantes. A ferocidade dos sentimentos. Dos actos. Das posições. A mulher cão que protege, o quê? De quem? A atracção. A vampirização. O crocodilo sodomita. As avestruzes bailarinas. O preto cruel com o rosa cetim inocente. A contemporaneidade das mãos. Protectoras. Exibicionistas. As sombras em contraste com a luz. A tinta da china com o pastel. O preto e branco com a cor. Os recortes com as gravuras. A ilustração de uma história viva com vida, provavelmente vivida e contada entre cada moldura. Recta. Não a estética. Não. Antes os labirintos da mente sem limites. Do brilhantismo da criação sinuosa dos sonhos e a sua transposição para o real. Frio. Cruel. Um conto, foi o que li.

Paula Rego



Dante

"Ali no ar sem estrelas ressoavam suspiros, prantos e gemidos fundos, que de início o pranto me causaram. Línguas diversas, blasfémias horrorosas, palavras doloridas, inflexões iradas, vozes fortes e roucas e, conjuntamente, mãos batendo faziam um tumulto sem cessar naquela atmosfera eternamente densa, como a areia remexida por um turbilhão. E eu, que sentia a cabeça apertada de horror, perguntei: «Mestre, que é isto que oiço? E que gente é esta, assim vencida pela dor?»"
...
Dante
in
A Divina Comédia:
O Inferno
pg. 17

Dominante

É a noite. Em todo o seu tamanho. Em toda a sua imensidão. Escura. Negra. Profunda. Difusa. Aglutinadora. Domadora de sentidos. Tidos como fechados. Na de Pandora. Na caixa. Fechada. Que à noite se abre com o uivo dos lobisomens.
É à noite. Que as prisões e repressões se expõem no negro da luz. No escuro do dia. No breu sem céu. Só horizonte. Longe. E saem livres e impunes. Irreconhecíveis na sua inexistência. Que as sombras curvilíneas se movem e mexem e dançam e sentem. Escondidas.
É na noite. Que os corpos duplicam. E o sal se mistura. Pura. Mente. Na noite ardente. Que o desejo perpetua. Arde. Sente. E a vontade galopa. Livre. Crente.
Só a noite. Amante. Dá vida. Dominante.

17 de outubro de 2009

Dominação

No meu domínio. Denomino-me como quero. Como posso. Quando passo. Quando o íman. Forte. Me puxa de encontre às paredes. E assim me faz permanecer enquanto activo. Enquanto o princípio activa as polaridades negativas e positivas. E relativiza o entendimento da física. Enquanto suspensa. Fico. Fraca. Fácil. Frágil. Ágil na tentativa inerte da fuga. Frágil. Fácil. Fraca. E fico. No frio das noites em branco. No fio do que ficou a meio. No rio que não segue direito. E riu. Me, de mim. Te, de ti. Vos, de todos. Presa nas teias de chumbo cortadas. Abertas. Dispersas. Disponíveis. Para mim. Assim. No meu domínio. Onde não domino. Apenas denomino. Me.

15 de outubro de 2009

Domínio


O Perfeito Domínio

Cordas e correntes apertadas, a cadeado fechadas. Ao longo do corpo enroladas num acto de dominação.
Sono cansado. Pesado. Trabalhado. Olhos suturados obnubilam a visão.
A cama de todos. De tudo. Dos corpos. Das mentes. Das ideias. Da imaginação.
Dos sonhos, não.
Mergulho no escuro. Da cama ferrada, da vida tapada. Acorrentada à exaustão.

12 de outubro de 2009

A Feiticeira e o Aprendiz

Anda daí.

Onde vamos?

Vou-te levar a um sítio. Especial. Vou-te levar ao sítio mais bonito do Mundo. Onde o Céu e a Terra se juntam. Onde consegues tocar nas Estrelas, fazer-lhes cócegas e mudá-las de lugar. Onde o som do Mar é a banda sonora perfeita para a simbiose que só lá se alcança. Onde fechas os olhos e te sentes a flutuar. Onde danças com o Vento.

É mais um dos teus sítios imaginários onde as tuas personagens te fazem companhia?

Não. Este é real. Vais vê-lo e senti-lo. Cheirá-lo. Tocá-lo. E, no final, vais descrevermo-lo para eu saber se o viveste tal como eu. Para eu comparar as tuas sensações, as tuas percepções, os teus sentimentos e para aprender contigo o que te tentei ensinar.

O que devo levar?

Vontade.Um espírito aberto e uma mente estéril. E vinho. Imitaremos os sábios Maias e vamos incorporar a Natureza, ver o futuro, o que nos espera, o que ele nos reserva, o que está traçado, como se o destino existisse. Vamos fumar o cachimbo dos sonhos e rir às gargalhadas com as descobertas que faremos. Um do outro. Vamos interpretar o fumo que se dispersa no Ar e distinguir as suas formas pagãs.

E o Mar? Ouve-se bem?

Como se a própria Tétis, deusa do Mar, se sentasse ao teu lado, juntamente com as sereias de Ulisses. A cantar. E som é de tal maneira nítido, que conseguimos ouvir os peixes e o canto das baleias dos Açores em migração. Serão eles a tua companhia, nesta nossa viagem.

E tu, onde estarás?

Ao teu lado. A ouvir-te e a ler-te o rosto enquanto a Lua se desvia e pinta as sombras com vida que se vão desenhando, transformando-o a cada momento em algo novo, à medida que os teus pensamentos mudam. Como se fosses uma tela de cinema.

E o que vamos fazer?

Falar. Falar. Falar. Como se não houvesse amanhã. Falar de tudo e de nada. De como o cheiro do Outono é forte e intenso. Especialmente de noite, quando o orvalho intensifica o aroma a terra molhada. Falaremos dos sapatos brilhantes da Dorothy e do valor da amizade. Falaremos do pote de ouro que está no final do arco-íris. De como é bom viajar entre os sonhos e entre mundos paralelos. De como é bom ser ouvido. E ouvir. Ouvir. Ouvir.

E quando estiver frio, beberemos mais vinho e seremos mais feiticeiros ainda e afortunados por podermos partilhar o vento fresco e uma manta polar, em plena Serra, em plena Noite, ao som do Mar e da Natureza, iluminados pela Lua e pelas Estrelas.

E vamos sorrir. De olhos fechados.

E, mesmo no escuro da noite, vamos conseguir ver.

Que a felicidade está na partilha.

Destes pequenos momentos.

Intensos.

Imensos.

E únicos.

11 de outubro de 2009

Diana krall


A Garota de Ipanema só apareceu no fim do espectáculo! Veio atrasada, mais uma, como tantos outros, que não fazem ideia do que perderam, se é que se pode perder o que não se tem só porque não se ouve, não se vê, não se sente. Cheek to cheek foi quase como se estava, no amontoado geometricamente separado entre joelhos e cabeças, sapatos e cabelos, música e dança. Tudo ali, tão perto, tão longe, lá dentro. Walk on by… Viagens do Canadá à Austrália. Do Brasil a Portugal. Viagens de dentro para fora, de fora para dentro, enquanto o som envolvente seguia a ritmo compassado, ondulante, titubeante, encantado. So nice. Uma delicia. As cores, a noite, o céu, as pessoas, os sons, a temperatura, a companhia e a música… Too Marvelous for Words on a Quiet Night

8 de outubro de 2009

Ihr Parfüm

Como uma brisa. Em movimento. A trinta e três rotações, como os discos, que giram, como a brisa, que move e risca a paus de giz o ar, como um caminho. Como o caminho, a seguir. A perseguir. A ser perseguido. Pela brisa. Daquelas de final de dia nas tardes de Verão. Suave. Subtil. Silenciosa. Insuspeita. Mas atenta, na sua rota centrífuga. Em que o centro não permite mais a fuga. Como uma dessas brisas quentes transportadas dos países tropicais onde tudo vibra em uníssono: o calor a música o suor os corpos o sal a sede o desejo a vontade. Como tantas outras brisas, sopradas das nuvens despertas, que libertas da sua vontade, as oferecem aos outros, que cheiram e sentem, que inspiram e recordam, que expiram mas guardam o seu cheiro, cheio. Apenas uma brisa, primária, naquele compasso em que o olhar passa e se cruza, no sentido em que a brisa será sentida, com o sentido de ser soletrada, notada e relembrada. A brisa. Presente. Acutila o olfacto e trás de novo o aroma de volta. Que fica.

6 de outubro de 2009

... eu sei

Assim, misturada na multidão, daquele jeito feiticeiro dos Índios que contrasta com o branco pálido da minha tez. Sou invisível. E diluo-me, imaterial. Sou uma personagem minha que não Eu. E observo. Vagueio perdida com um rumo pouco definido, incerto. Deixo-me seguir no meu ritmo lento de exploradora enquanto caço com o olhar o andar ondulante da urbe que passa. Que me arrasta na mesma direcção. E saboreio. A sensação de impunidade de lhes roubar as almas de tanto os prender em mim. De os pensar e analisar. De os medir e avaliar. De os desprezar por seguirem sem ver, sem sentir, nem mentir. E delicio-me por poder ir sem pressas, sem demoras, simplesmente ir na liberdade do passo lento, dançável, como um bolero que tanto quero e que danço com a multidão sem ela saber. Porque eu sei. Sei que, quanto mais rápido for o nosso passo. Quanto mais rápido quisermos chegar. Quanto mais rápido chegar o amanhã… mais rápido nos vamos esquecer de inspirar o hoje.

5 de outubro de 2009


Amigos Imaginários?

Como uma pessoa consegue andar uma vida inteira enganada A fazer mal. A desperdiçar tempo com coisas que, na realidade, não servem para nada. Até que, um dia, do nada, tem uma visão, um insigh e tudo passa a fazer sentido de uma outra maneira, da outra maneira, ao contrário, quase do avesso! De certo que não se passa somente comigo, mas fui eu que tive a última revelação e fui eu quem teve que lidar com ela… Toda a vida tive amigos imaginários. Quem me conhece sabe, quem não conhece, desconfia. Fazem parte do meu imaginário, a par com a realidade disfarçada em que vivo. Falamos muitas vezes uns com os outros e temos com cada conversa… na maior parte das vezes concordam comigo, raramente discordam ou discutem e, desta maneira, temos partilhado uma vida conjunta já com alguns anos de desenvolvimento. Só que… há pouco dias, tive uma revelação. Daquelas que aparecem do nada, que surgem imateriais mas que rapidamente se materializam na nossa cabeça e já não saem mais! Decerto que não estou a falar estrangeiro para ninguém. Nesta aparição tive a consciência daquilo que tenho andado a fazer estes anos todos. A falar com personagens? Imaginárias? Pessoas do meu dia-a-dia que materializo ao meu lado e com quem vou mantendo conversas e que me respondem aquilo que quero ouvir. Onde é que tenho andado com a cabeça?! Cheguei à conclusão, tímida e envergonhada, que tenho andado a perder tempo toda uma vida com... isto. Isto, quando poderia muito bem ter mantido estas conversas com os objectos que me rodeiam! Já alguém imaginou a quantidade de história que os objectos que nos rodeiam e que acompanham a nossa vida, todos e todos os dias, têm para nos contar?!
Descobri um novo mundo! Vou explorá-lo!

4 de outubro de 2009

Àquem... sempre, sempre além...

3 de outubro de 2009

"Tudo o que se pensou do amor ou da loucura através dos séculos assinala a existência e como que a localização de coisas em si. Todavia, não possuímos uma verdade adequada das coisas, porque só alcançamos uma coisa em si através da ideia que dela construímos em cada época."
...
Paul Veyne
in
Foucault
o pensamento
a pessoa
pg.16

2 de outubro de 2009

Exorcização dos Demónios

Adiou. Adiou. Adiou. Até que não foi mais possível. Até que se tornou impossível! Era hoje. Agora. Não suportava mais e não queria mais testar o limite dos limites que acreditava já ter atingido e ultrapassado. O limiar da sanidade ainda presente lado a lado com o abismo para onde olhava. A exorcização dos seus demónios só seria feita na presença dos mesmos, com ou sem padre. Com ou sem mãe. Com ou sem amanhã. Ámen.

Entrou.

Um a um foram aparecendo. Todos eles. Todas elas. Criações suas, da sua cabeça, da sua ficção, da sua vida, do seu dia-a-dia. Todos ali presentes no mesmo espaço contíguo, limitado, delimitado e apertado. Na escuridão. O sufoco da sobrelotação da cabeça e do corpo. Da irrespirabilidade do espaço e da mente. Um a um, na sua vez, na sua loucura, na sua obsessão. Encarnaria cada uma das suas personagens até as esgotar de tanto as sentir, de tanto se sentir, até se esgotar e degolar de tanto as viver com a violência latente que emanava de cada gota de suor que escorria. E cada gota salgada era um novo corte. E cada gota de sangue era uma nova obsessão. E cada novo corte uma nova personagem, que testava, continuamente, compulsivamente para não sobrar nada de nada do nada que o nada é. E ficar o vazio e o vácuo. O nada. A mudez. A cegueira. A insensibilidade. A ausência, onde ficava a planar até, a pouco e pouco, ir voltando a si. Parestésica. Despida das feridas e das queimaduras infligidas. Aos outros. Despida dos pensamentos e das histórias. Dos outros. E voltar a Si. Febril. Letárgica… Lenta e delirantemente...

Cá fora, de novo. Nova.

29 de setembro de 2009

O inverso do universo

Uma mão em cada pólo.
A agitação enérgica e centrifugada.
A sobreposição de terra e água.
A mistura do fogo e ar.
O câmbio de vidas e corpos.
E agora que tudo sobreviva, assim, fora do sítio.
No avesso da homeostasia gravitacional do universo.

27 de setembro de 2009

Incisões centimétricas

Tão normal. Vivia nessa normalidade, banal e habitual de todos e de todos os dias. Nada em si se destacava por demais. Simpaticamente tímida. Bem educadamente conversadora. Mediocramente trabalhadora. Nem mais, nem menos. Apenas o suficiente para não ser conhecida mais do que os outros, nem desconhecida como senão existisse. Aquela neutralidade do café com nata no café à porta do trabalho. Da sopa com salgado no snack da esquina. Do pão e congelados no supermercado da rua. Da comédia romântica gasta no clube de vídeo do bairro. E do ritmo biológico do dia seguinte, tão igual ao anterior. Tão igual aos que ainda esperam por vir.

...um centímetro... apenas um centímetro, hoje...

E os dias corriam. E a vida corria. Não era mais feliz do que ninguém, como se os outros importassem mais do que ela. Mas também não era infeliz. Era ela mesma. Era a sua vida. Ela era a sua vida e aquilo que vivia. Que sabia viver. Que sempre tinha vivido. E, se isso não fosse vida, o que seria, então? Não o que via nos outros ou que tentava ver. Muito menos o que acreditava descortinar dos gestos, das histórias, das redes sociais. Como se isso dissesse quem os demais eram. Dizia, de certa forma, que tinham necessidade de serem traduzidos, também eles, apenas isso.

... não muito fundo... tem que ser regular, normal e igual aos outros todos... mesmo que só um centímetro...

Sentia-se confortável consigo. De dia. Vestida. Tapada. A roupa na sua função estética, que podia muito bem ser estática. Era-o. Calças e mangas compridas. A exposição insconsciente sempre a tinha assustado. Não a que parece demasiado exposta aos outros, mas a que se expunha sem consentimento ou conhecimento ou sentimento. E o conforto era o casulo improvisado ao longos dos anos. A bolha de vidros esfumados que a revestia. Que a escondia dos outros, de dia. E de si, sempre.

... quantas incisões pelo corpo? Quantas hoje? Uma... um centímetro... pelo menos um... um por dia...

24 de setembro de 2009

Inquietude


inquieta...
amputada de um membro que desconheço
falta-me um polegar a mais
...

22 de setembro de 2009

Reset

Identificar o nosso Solstício e vivê-lo.
Apanhá-lo como uma onda e seguir na sua crista, na sua ondulação e com ele ondular. Sonhar. Dançar. Aproveitar dele o máximo possível e conhecê-lo. E abusá-lo. E usá-lo. E saboreá-lo. Porque sabe bem... tão bem... E aproveitá-lo.
Rolar na areia. Ouvir o mar. Sentir o Sol. Não comer. Não dormir. Mas sorrir. Sempre.
Mas os Solstícios acabam…
É preciso arquivá-lo. Colocá-lo em pastas e ordená-lo por sentidos. Sentimentos. Sensações. Guardá-lo para já não mais mexer. Mas olhá-lo. Recordá-lo.
Porque nunca se esquece. Nada se esquece.
Adeus...

conclusão complexa de uma conversa simples como de resto o são todas as que são boas e tardias

... outros precisam ser amados para que consigam (continuar a) amar...

20 de setembro de 2009

19 de setembro de 2009

acto do inconsciente para a sobrevivência

agrafo as janelas e as portas que ficaram abertas sem que para isso houvesse intenção consciente na inconsciência da acção e do querer
grito para as brechas por onde passa a luz em ebulição que queima ao toque da memória para que se fechem e calem e espoliem o que há a temer
canto para as paredes porosas espumosas onde se esvai a vontade a conta gotas para exorcizar os casulos onde se formam as borboletas em flor que lutam por viver
desafio o equilíbrio gravitacional em pontas e aponto para a ferida onde coloco sal e espremo e calco e olho de frente até sangrar para sorver como a um leito de um rio imberbe que segue até o mar o deter

17 de setembro de 2009

"They get up early, because they have so much to do, and go to bed early because they have so little to think about."
...
Oscar Wilde
in
The Picture of Dorian Gray, pg 202

15 de setembro de 2009


Agarra no espelho e escreve.
Deixa-te reflectir nessa linha de água estanque.
Procura no vácuo e desmascara o inconsciente.
Diz-lhe que lhe sabes os gestos.
Os jeitos.
Despe-o.
...
E materializa na ontografia das letras o fio dos pensamentos não ditos.

...

14 de setembro de 2009

E saía de casa a correr

“Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” Estava tudo confirmado, na sequência habitual e suposta: o perfume no aparador à porta de casa, geometricamente ao lado das cartas para pagar e dos folhetos de publicidade; a chave do carro tirada da mala e enfiada no bolso direito das calças de ganga; o telemóvel topo de gama, ainda sem mensagens àquela hora; o relógio que tirou da gaveta, sem olhar, não havia dúvidas, era o terceiro a contar da esquerda; e os cigarros, quatro, apenas. E saía de casa a correr. De manhã era praticamente impossível não sair de casa quase atrasada, fazia parte do seu ritual – acordar após o despertador ter tocado sete vezes, com intervalos de quatro minutos cada, de forma a adiar o mais possível a primeira dolorosa acção do dia e levantar-se ainda a dormir e seguir directa para a varanda, nua. O choque gelado da manhã, de Verão ou de Inverno, era o seu primeiro catalisador, a primeira injecção de adrenalina obrigatória e fundamental. Sem isso era como se não tivesse sequer saído da cama. Sem isso, nem valia a pena sair da cama, porque só na varanda, a sentir o frio da manhã na pele, na sua totalidade, centímetro a centímetro, é que o dia começava. Só aí, é que a corrente que irriga o cérebro se ligava e a engrenagem circulatória iniciava o seu percurso habitual, de forma súbita e sobressaltada. O resto, seguia de forma desordenada e banal, como só acontecia àquela hora matinal e em mais nenhuma. A desordem não a adjectivava, tal como o imprevisto não fazia parte das suas preferência. “Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” E saía de casa a correr.

12 de setembro de 2009

"... Lá de fora vinha o ruído do trânsito ao fim do dia, um ruído de gente e automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias..."
...
Miguel Sousa Tavares
in
No Teu Deserto, pg 110

11 de setembro de 2009

Tricot da vida alheia

Vem! Podes vir agora. Não está aqui ninguém nem ninguém nos vai ver. Salta cá para fora com cuidado para não fazeres barulho e não te magoares. Assim vamos poder estar à vontade e, principalmente, vamos poder falar à vontade sem olhos nem ouvidos demasiados atentos e demasiado conclusivos. São sempre assim os olhos e os ouvidos alheios: cheios de conclusões basilares. Nunca conseguem ver nada para além daquilo que querem ver. Constroem histórias mais rápido que um novelista e o novelo que desenrolam é de tal maneira extensível, que me admira não tropeçarem nele em toda a sua extensão. Tropeçam outros que se deixam enrolar na conversa ao conversarem sobre o que não lhes diz respeito. Respeito quem não tricota esta teia alheia e nos deixa à vontade. Aos dois. Gosto de falar contigo. Gosto que gostes de falar comigo. Mas não gosto dos olhares indiscretos. Os de soslaio. Os diagonais. Não gosto que me julguem só porque não percebem. Perceberiam que estás aqui? Que és real? Que sempre o foste? Perceberiam se lhes explicasse que estou a falar contigo mesmo que, através dos seus olhos, não te vissem? Perceberiam se lhes explicasse que estou a falar contigo mesmo que, através dos seus ouvidos, não te ouvissem? Perceberiam… à sua maneira…

9 de setembro de 2009

Como se fosse a primeira vez

Aproximou-se da porta, com passos de lã. Suaves. Mudos. Rasantes. Um pé de cada vez, a medo. Com medo de acordar o pó que se desviava à sua passagem. Com medo que o Mundo se apercebesse da sua presença, da sua existência. Evitava até respirar. Fazia-o com intervalos cada vez mais espaçados, de forma a não desperdiçar um único barulho, nem sequer o do ar à sua volta. A não desperdiçar o ar, sequer. A porta era logo ali. Tão ali. Já ali. E mesmo assim, tão longe, cada vez mais longe à medida que se aproximava. O êxtase. A excitação, como se fosse a primeira vez. Era sempre a primeira vez. A única. Porque acontecia, existia, mas passava. Não se repetia. Nunca se repetia. E cada nova vez era uma nova aventura. Isso mesmo, aventurava-se cada novo dia numa nova aventura. E cada dia se sentia mais inebriado, ébrio perante a ferocidade dos seus sentimentos, das sensações que lhe causava - das físicas. A porta. Os sons. O barulho. Os nervos. Os tremores. A ansiedade. A descoberta. O ser descoberto. E a coragem para lá chegar. Já rente, a sentir o cheiro cáustico do suor das mãos entranhado na madeira da porta. Simétricas. No mesmo local milimétrico onde a erosão tinha desenhado o leito da mão. Da sua. Suada. Sapuda. Servente do vício. Parado. Os olhos impenetráveis. Fixados, não se desviavam enquanto a mão, a mesma, rugosa, usada, depravada, abria o óculo da porta. Estático. Era aí que ficava. Estático a ver as pessoas passar na rua, nas suas vidas que aglutinava como dele. E ali ficava com uma lealdade religiosa de confessionário. Com uma depravação obstinada de filme pornográfico. E deglutia. A saliva pela garganta seca. E deglutia. A passagem dos transeuntes. Efémera. Pelas suas mãos. Molhadas. Pela sua vida. Vazia. Mas só dele. E em nada dele.

6 de setembro de 2009


"... Nisto, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem - esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno..."
...
Miguel Sousa Tavares
in
No Teu Deserto, pg 15

3 de setembro de 2009

[Silêncio]

O silêncio incomoda-te? Sim. Incomoda. Não me sinto à vontade. Contigo. Em silêncio. Eu incomodo-te? Nunca. Apenas o silêncio que ainda não sei aceitar. Contigo. Desenvolve-se… com o tempo. Com o à vontade. Com a vontade. Com o que se conhece… do outro. Ou com o que se deixa conhecer.

[Silêncio]

É das coisas mais difíceis de partilhar… o silêncio?... sim… sim. O Silêncio. É um espaço íntimo, demasiado íntimo, que não se consegue partilhar com qualquer pessoa. Que nem sequer se quer partilhar com qualquer pessoa. O meu silêncio é só meu. Meu e de quem está comigo a viver o que não se diz, a pensar o que não se ousa, a querer o que não pode. No silêncio criam-se mundos… só nossos… tão nossos…

[Silêncio]

Gosto de estar em silêncio. Contigo. Gosto do teu silêncio para mim. Tão óbvio em mim. Contigo. O silêncio? Os Mundos. Criados? Ficcionados. É no silêncio que se ficcionam os Mundos, as Vidas. À noite que crescem, debaixo das Estrelas e da Lua, com vinho e conversa. Os Mundos? Os sonhos… Ficcionados? Sonhados. Como todos os sonhos. Quanto tempo duram… os sonhos? não duram. São-no, enquanto existem. Enquanto são sonhados. Até que se acorda. E fica a lembrança do sonho. No silêncio. Partilhado. Distorcido. Turvo. Como o são todas as memórias. Moldáveis. Que são recordadas apenas no silêncio.

[Silêncio]

Apetece-te falar? Não, agora prefiro ficar em silêncio. Comigo.

[Silêncio]
"... cada um só recebe mediante a sua capacidade de receber (...) ninguém suporta receber mais do que aquilo que é capaz de devolver - sob a ameaça de pertencer àquele de quem não cessa de receber."
...
in
A Moeda Viva, pg 61

2 de setembro de 2009

O Tempo Temporizado


A Temporização do Tempo

Parece que Setembro chegou. Os calendários assim o dizem e, por norma, não enganam, nem se enganam, sejam eles Romanos, Maias, Egípcios ou Chineses, de outra maneira não os seguiríamos da forma cega e ordeira que fazemos. A fidelização da nossa Vida à ascensão da numeração, presa aos segundos, minutos e horas que se agregam em dias, meses e anos, sem que questionemos, por uma vez que seja, a sua lógica, a sua existência, a sua sequência. Interiorizamos e utilizamos os mecanismos definidos, impostos do Tempo como genética da nossa existência, em que as células não envelhecem com a sua durabilidade, mas sim com o tiquetaque do relógio, cronometrado em nanossegundos. E aplicamos toda a nossa subjectividade a esta contagem. E tornamo-nos dependentes. E somo-lo, de facto: dependentes da soma ou subtracção dos dias, dos que faltam, dos que já passaram, dos que ainda hão-de vir e de todos os outros. Mais uma vez, distraímo-nos com o que não é visível nem palpável. Mais uma vez, isso condiciona a nossa Vida. Condiciona-Nos. Direcciona-Nos. Subjuga-Nos. As Nós, que sem querer, já estamos em Setembro, sem tempo para pensar como aqui chegámos tão céleres. Nós, que nem sequer daqui saímos, de tão temporizados que estávamos.

31 de agosto de 2009

Posso entrar?

Resolvi entrar sem bater. A porta estava aberta e, se assim estava, é porque só podia ser um convite a quem passasse. Não que eu estivesse de passagem. Passei, mas porque vinha a caminho. No fundo estamos sempre em busca de algo, a caminho de alguma coisa, mesmo quando estagnamos, imóveis, imutáveis. E uma porta aberta, é quase um voucher de aventura, com o desconhecido do outro lado. Posso-me sentar? Obrigada. Vim de escadas, achava que assim chegava mais rápido. Achava que assim chegava cá, não me fosse enganar a carregar no botão do elevador. Não seria a primeira vez. Certa vez fiz uma viagem além fronteira só porque marquei o andar errado. Ou terei marcado o certo? Acabei a andar num tapete voador, daqueles persas, trabalhados. E como aquilo voava! Mas foi uma viagem curta. Mas foi uma viagem inesquecível! Mas foi já há muito tempo. Parece que as coisas boas, foram sempre há muito tempo. O presente nunca é suficiente, nunca é o esperado, como se as nossas expectativas ficassem sempre aquém. O presente é sempre um meio-termo, um termo meio cheio, cheio de tudo aquilo que, de momento, nem sequer queremos. Só na falta do que temos, quando se transforma em passado, é que passa a ser bom. Que inconstância. Que inquietude. Que instabilidade. Nota-se que ando mais instável? Claro. Foi por isso que vim. E entrei. Resolvi entrar sem bater porque a porta estava aberta. Achei que não faria mal. Mas, se calhar, vim em má hora. Vim? Posso voltar noutra altura. Quando estiver de passagem a caminho de alguma coisa ou em busca de algo. Talvez até encontre e já não precise de entrar. Talvez a porta já esteja fechada. Fecho-a quando sair? Obrigada.

30 de agosto de 2009

28 de agosto de 2009

Agosto


27 de agosto de 2009

A gosto

Quente, sufocante, aconchegante, irrespirável, impensável de ser de outra maneira que não letárgica, alérgica a qualquer descida da temperatura sentida ou vivida, na pele, no estômago, condensada num módulo romano de conquista além mar. Agosto em pleno no rosto ao sentir o suor a gosto, pelo corpo com sal de desejo e de mar, a navegar nas ondas incessantes de um Verão que ameaça não chegar e não ficar e apenas diluir-se, marcado a bronze bikini indelével.

26 de agosto de 2009

As pequenas coisas que nos fazem sorrir

As pequenas coisas. Aquelas pequenas coisas que, sem razão aparente e vindas do nada, nos fazem sorrir. Mesmo sem o compreender, mesmo sem descobrir uma razão com lógica para tal. Apenas, porque sim. Apenas. Esta noite, vinha eu a conduzir, mais uma vez a conduzir, (mais parece que passo metade da minha vida ao volante do meu carro-só-me-dá-problemas, o que no fundo, tem uma ponta de verdade, no meio desta minha vida semi-nómada...). Parei num semáforo, num dos muitos e múltiplos e multiplicados e multiplicáveis semáforos que, juntamente com as horas ao volante, compõem a minha vida, especialmente quando não se transformam noutra cor que não o vermelho-STOP. Cantava, como sempre, a música que passava na rádio. Nem sequer tive que inventar muito a letra, como por vezes se torna necessário, dado as letras das músicas mudarem constantemente, como todos sabemos, a par com as vezes que os cantores se enganam. Passava Mafalda Veiga, “Em Cada Lugar Teu”, ao vivo no concerto mais pequeno do mundo da Rádio Comercial. Eu, como sempre, mais entusiasmada no meu concerto privado e pessoal do que a própria Mafalda no dela, cantava cada vez mais efusiva, ou tão efusiva quanto a minha rouquidão-praticamente-afonia me permitia. Olhei para o retrovisor, afinal estava parada e tinha que olhar mesmo para algum lado, não fosse o condutor da frente achar que eu tinha uma fixação psiquiátrica qualquer pelo seu carro, quando me deparo com a pessoa que ia no carro atrás do meu: não é que estava a cantar a mesma canção?! Obviamente que o som não chegou a mim da forma a que a primeira leitura induz, mas a abanar a cabeça ao mesmo ritmo que eu e a movimentar os lábios no mesmo compasso. Quase que tive vontade de sair do carro e ir falar com a rapariga. Não o fiz, afinal ainda me resta algum bom senso, mas tive vontade. Juro que sim! E nisto, o semáforo passou para verde-toca-a-arrancar e eu segui. Abri piscas para a direita (apesar de só ter empurrado a patilha) e segui a minha viagem a sorrir. Quase ridículo, bem sei, mas fez-me sorrir até casa este sentimento de partilha anónimo. E é este mais um exemplo do encadeamento de vidas. Desta vez, não me parece que eu tenha influenciado a vida de outrém, mas alguém desconhecido fez sorrir o meu final de dia.

24 de agosto de 2009

"Talvez não possa ser de outra maneira, talvez seja preciso escolher: não ser nada ou representar o que é. Mas é terrível ser-se levado pela nossa própria natureza."
...
Sartre
in
A Idade da Razão
(Os Caminhos da Liberdade), pg. 264

23 de agosto de 2009

Mil visitas ao meu blog. Mil visitas ao meu blog… Mil visitas ao meu blog?! AO MEU BLOG??!!!!

Wow...

Vida de Pó

Escorregou da prateleira. Sequiosa de companhia, de convívio, na ânsia de encontrar outras como ela, pequenas, imperceptíveis, quase invisíveis na sua unidade, na sua existência individual praticamente nula. Escorregou devagar, a medo. Passou rente ao aquário, o mesmo, tão rente e tão perto que diria que entrou, se sentou e conversou, no tal sítio. Mas foi apenas um aceno que de lá recebeu, da mesma. E seguiu. Deslizou pelo aparador e sentiu-se grande, importante, imponente nessa sua descoberta da vida para lá da prateleira. No aparador já era maior, já não era apenas a mesma, uma. Lá, o sentimento de superioridade ultrapassava o que até aí sabia da vida. Já não estava mais sozinha, já não dependia apenas dela mesma. Sentiu-se acarinhada, compreendida, descobriu que tantas outras, como ela, haviam passado pelo mesmo, pela eclosão solitária e estéril num qualquer outro ponto, distante, indefinido, irrelevante. Aqui, o sentimento de pertença fê-la acreditar que o passado apenas havia sido um meio para o fim presente, e sentiu-se majestosa. E não ficou por ali. O Mundo para lá do aparador, quadrado, não a assustava, não as assustava. E deixou-se levar presa a uma lufada de ar. Voou na sua leveza de pena com asas, na sua globalidade familiar de bando, digerindo cada novo milímetro de conhecimento. No chão era imensa. Já não era apenas grande, era gigante, populosa, dominadora, déspota do seu território, qual cisne transformado, a pequena partícula de Pó havia-se metamorfoseado em cotão.
Maldita!!!

21 de agosto de 2009

Sul (def.)

s. m. ponto cardeal diametralmente oposto ao norte; meridião; meio-dia; vento que sopra desse ponto. Designa-se abreviadamente por S e grafa-se com maiúscula inicial quando designa regiões. (Fr. sud, do ang.-sax. suth)

Sul (cont.)

Fui ao Sul. Fui ao Sul para encontrar, para me encontrar porque perdida, em tempos, me parecia estar. Perdida numa selva alegórica cujas criaturas, minhas conhecidas por apresentar e descobrir, por explorar e desafiar, em mim habitavam. A mim me habituavam a viver numa loucura insana, sem sentido e direccionada. Fui ao Sul para sentir o vento na cara a falar-me ao ouvido e nada ouvir. Para descobrir o que sabia sem sequer o saber. Que o contraste do azul céu com o creme seco palha faz nascer papoilas no ninho das cegonhas. Mas no sul nada encontrei nem me encontrei e segui. Segui os pontos cardeais Sul acima para em todos eles me picar na sua ponta aguçada, afiada, que me desfiava sem sentir ou mentir, a mim. Meti-me Sul a dentro para não soluçar o compasso das horas e apenas dançar no imaginário da ficção, protegida a vidro arco-íris. No Sul permaneci, embalada no bolero baloiçante dos rolos de palha plantada na planície geométrica azeitona.

18 de agosto de 2009

Sul

by Carina G. (com som)

"Olho a planície (...)
e sinto-me invadido dessa plenitude
de quem olha o mar
do alto de uma falésia."
...
Vergílio Ferreira
in
Aparição

16 de agosto de 2009

Sabe bem...

noites de Verão quentes contar as estrelas e apontar com o dedo e passear de mãos dadas sem falar e falar de tudo e mais alguma coisa e o cheiro a terra molhada quando chove e sentar na areia e olhar o mar e fazer guerras de areia e rebolar na areia e fazer sku e beber copos com os amigos e ter conversas parvas e ter amigos e ter conversas viajar sem destino conduzir de janela aberta com música alta cantar em todo o lado cantar musica pimba e dizer que é pela piada ir ao cinema e ver um bom filme ver outro de seguida e ir a museus aprender e comprar livros e começar logo a lê-los e saltar palavras para chegar ao fim comprar roupa gastar dinheiro tirar fotografias ver fotografias mostrar fotografias andar a pé sem rumo nadar no mar sem ondas estar horas ao sol quente ficar bronzeada olhar para espelhos que não engordam ouvir piropos rir de uma piada seca tentar dizer uma piada seca e não controlar o riso e doer o estômago e estar na esplanada ao final da tarde e ver o pôr do sol sorrir partilhar uma sobremesa partilhar uma pastilha elástica re-aprender a fazer balões falar com pessoas interessantes ser interessante sonhar e recordar os sonhos sonhar acordada falar sozinha e eu responder falar sozinha e alguém responder beber mojitos com caracóis comer bolas de manteiga e tortas de chocolate correr pela casa jogar badminton em casa fazer rafting e ter medo e frio e querer fazer mais ter surpresas fazer surpresas amar e ser amado pensar e ser pensado deitar tarde e não levantar cedo e conseguir levantar cedo e ser feliz

12 de agosto de 2009

Ninguém o fará por nós

Porque os pores-do-sol nunca são iguais.
Porque não vamos para novos.
Porque se não arriscarmos, ninguém arriscará por nós.
Porque se não vivermos, ninguém o fará por nós.
E porque nunca saberemos quando será o último mergulho de Verão:
mergulha de cabeça
sem medo
porque só assim te sentirás vivo!

11 de agosto de 2009


Rotundas da Vida

As voltas que a vida dá. Em círculos, imperfeitos, esborratados, por vezes forçados, indo de encontro ao início, ou ao fim e se une, num acto contínuo, numa circunferência ondulante e ininterrupta que, como as ondas do mar, segue o seu caminho, de sete em sete. Como um gato. Que as tem mais que uma. Felino, como quem vive quem recomeça de novo. Faminto, como quem não sabe onde é o fim. Feliz, como quem vive e não pensa. Nem sente. Apenas passa. E curva.

Vício

s.m. defeito pelo qual uma pessoa ou uma coisa se afasta do tipo normal, de maneira a ficar mais ou menos inapta a cumprir o seu fim; hábito profundamente enraizado de acções gravemente imorais; mau hábito; costumeira; impetinência; erro; libertinagem; desmoralização.

10 de agosto de 2009

Da ponta dos pés à ponta do cabelo não há um meio, porque o meio sou Eu, e Eu sou da ponta dos cabelos à ponta dos pés, sem meio, mas ao meio, só Eu.

Só, na multidão...

A capacidade de estarmos sozinhos no meio da multidão (quando não imposta), é intrínseca à maneira como nos sentimos. É proporcional à estabilidade do inconsciente e inversamente proporcional à vulnerabilidade de nós mesmos.
Usufruir do estar-se sozinho, só funciona quando as vozes interiores se calam, quando o pensamento inseguro se desliga e quando nos conseguimos desligar do mundo que nos rodeia, podendo assim, passar a observá-lo e analisá-lo.
Inspirações de confiança de forma a homogeneizar o sentimento de segurança, de periodicidade regular e contínua, equilibram a balança que tende para o negativo, como se de difícil se tratasse. Mentira. Basta praticar. E, ao mesmo tempo, dominar a insegurança. Aniquila-se metade do egocentrismo que leva ao desconforto, porque, se não acreditássemos que o Mundo tem os olhos postos em nós, não no sentiríamos tão incomodados.
Admiro, portanto, quem tem a capacidade de saber estar só, de conseguir estar só e estar bem. Claro que, também admiro quem, dia após dia, se esforça para o conseguir! Admiro todos aqueles que se esforçam para serem melhores, seja naquilo que for…

9 de agosto de 2009

Há Pessoas Assim

Há pessoas que têm um dom. Há muitas pessoas que têm um dom. Também há pessoas que têm muitos dons. Mas há aquelas que têm o dom particular de fazer com que toda a gente goste delas. Há pessoas assim! É verdade! E extraordinário também. E não deixo de me perguntar, como é que o conseguem? Será a maneira como falam? Como sorriem? Será aquilo que dizem? As histórias que contam? A maneira como o fazem? Será a sua energia? A sua serenidade? O tom de voz? Para mim é um mistério, um verdadeiro mistério. Um mito. Urbano. O único problema, é que falam para nós daquela maneira especial e envolvente… com que falam para toda a gente. E nós, que naquele momento no sentimos tão especiais… passamos a ser apenas mais um… Há pessoas assim…

8 de agosto de 2009


7 de agosto de 2009

I´ve got to see you again

“Lines on your face don´t bother me…” Canto e conduzo, lines on your face don´t bother me. Meto a primeira. Embraiagem, acelerador e a música continua a tocar “Late in the night, when I´m all alone…” olho para cima e lá estão a Lua e para a Estrela que, desde ontem, me acompanham até casa. Em plena cidade, brilhantes, ofuscantes, nítidas, as duas, lá no alto, comigo, enquanto estou parada no trânsito a meio da noite. A caminho do meio de Agosto. A gosto de uma noite de Verão. “I could almost go there, just to watch you be seen” nesta noite fria, em que fria não é a luz da Lua. Nem da Estrela paralela que perpendicularmente se coloca a seu lado. Alterno entre a primeira e a segunda e avanço por etapas. Alterno entre o início e fim e perco-me pelo meio, “I can´t help myself…” I´ve got to see you again. E o refrão repete. E a canção repete. E a história repete. “Lines on your face…”

Nunca somos idênticos a nós próprios

"Na verdade, mesmo que um animal passe por um ser vivo e idêntico a si próprio no tempo que medeia entre a infância e a velhice, mesmo que se afirme ser o mesmo, nunca é, na verdade, sempre o mesmo. Incessantemente rejuvenesce e continuamente perde o pêlo, a carne, os ossos, e o sangue e, não apenas no corpo, mas também no espírito. Costumes, carácter, opiniões, paixões, prazeres, aborrecimentos, temores, jamais qualquer dessas coisas se conserva sempre igual no nosso espírito, mas umas nascem e outras morrem. Mas, o que é ainda mais estranho, é que os nossos conhecimentos tão depressa nascem como perecem, e nunca somos idênticos a nós próprios."

Platão

in

O Banquete

(O Simpósio ou do Amor) pg.98

6 de agosto de 2009

Como se me soubesse a fel este sabor a mel. Como te sei cruel, óh Tentação!

O Teu Toque

Imagino o teu toque.

Sei-o. Sinto-o.

Contido. Limitado. Renitente. Reticente.
Com pausas. Indecisões. Dúvidas. Recuos e avanços.
Com tremores. Com vontade. Com medo.
Com desejo. Com receio.
Imagino-o por mim fora. Por mim adentro.

Sei-o. Sinto-o.

Mágico. Firme. Sensual. Delicado.
Decidido. Conhecedor. Explorador. Atrevido.
Desprotegido. Meigo. Terno.
Ergonómico. Económico.
Imagino-o meu.
Por mim. Para mim. Através de mim.

Sei-o. Sinto-o.

Desejoso. Temeroso. Libidinoso. Apaixonado.
Desesperado. Acordado. A dormir. Verdadeiro.
Pulsátil. Inocente. Envergonhado. Dependente.
Viciante. Viciado. Sonhado. Despido. Temido.
Imagino-o como único que é.

1 de agosto de 2009

Habitual. Normal. Característico. Adjectivável.

... sim, faço-o de vez em quando. Não com uma ciclicidade periódica, nem uma periodicidade rotineira, mas de quando em vez faço-o. Não é um hábito nem um costume, diria que é apenas uma mania, mais uma, mas uma mania com lógica, com razão de ser e aplicabilidade prática, só assim as manias fazem sentido, pelo menos as minhas. Aliás, as minhas fazem sempre sentido, de outra maneira, não seriam as minhas manias, nem manias sequer. A ocasionalidade não se prende com o conforto e segurança das actividades rotineiras, a única segurança é a facilidade de pensamento, a desenvoltura aritmética do dia-a-dia de forma a não ser tão dependente dos gadgets actuais, mas não perdendo a dependência material da sua utilização, nem o prazer do manuseamento inato que temos vindo a adoptar com o passar dos tempos. É um entretém, uma forma de me ajudar a adormecer sem o conseguir, e uma forma de me distrair e levar o pensamento para o que não me deixa realmente adormecer. Contra senso, sim, mas é habitual. Normal. Característico. Adjectivável. Digo a tabuada do dois ao nove de quando em vez antes de adormecer! Será assim tão estranho?

31 de julho de 2009

O esquecimento de te ter perdido

Perdi-te...
Não percebi.
Perdi-te. Apenas isso.
Mas eu estou aqui à tua frente.
Não sei quando. Já não me lembro. Nem quando foi, nem como foi.
Eu estou aqui à tua frente. Eu! Cheguei há pouco.
A estranheza que é perder algo. A dificuldade que há em se aceitar isso mesmo. Perder-se algo que é nosso, independentemente de nos pertencer ou não. Independentemente de existir ou não. Não se trata somente de posse. Apenas falta. Não necessidade. Hábito e vício. O esquecimento de te ter perdido.
Mas o que é que te esqueceste?
Sim, não esqueci. Perdi. Os objectos mal adaptados são facilmente perdíveis, tal como um iman que não cola. A ergonomia das vontades e dos quereres como peças mal encaixadas.
Encontrei um iman debaixo da mesa...
...descolado, desmembrado, desadaptado. Perdido. Assim ficam os objectos que não se querem perder. Assim acredita quem os perde. Assim fica quem os perde. E eu perdi-te.
Mas eu estive aqui...

28 de julho de 2009

Serpenteando os contornos da vontade a par com a aniquilação da ficção que habita o irreal e imaginário pórtico que dá entrada para o hiato temporal na ponta dos dedos tatuado.

25 de julho de 2009

...anticorpos...

... a criação de anticorpos é a inevitabilidade da sobrevivência da condição humana. De que outro exército disporíamos para combater as atrocidades mundanas do dia-a-dia, de forma a que restassem apenas arranhões e contusões...

23 de julho de 2009


Em Nome do Amor Puro

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa não é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que eu quero fazer é o elogio ao amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoaes meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado, foi parar a Liverpool. Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se. Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim?
Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato. Por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram «em diálogo». O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que deveria ser desmedida, é na medida do possível. O amor transformou-se numa questão prática. O resultado é que as pessoas em vez de se apaixonarem de verdade, ficam praticamente apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há. Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do «tá bem, tudo bem», tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores de romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o medo, o desequilíbrio, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso «dá lá um jeitinho» sentimental. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, fachada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo de ainda apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A «vidinha» é uma conveniência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. E é por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita. Não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que se quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar. O amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para se perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder, não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."


Miguel Esteves Cardoso
in
Último Volume, pg 75