29 de setembro de 2009

O inverso do universo

Uma mão em cada pólo.
A agitação enérgica e centrifugada.
A sobreposição de terra e água.
A mistura do fogo e ar.
O câmbio de vidas e corpos.
E agora que tudo sobreviva, assim, fora do sítio.
No avesso da homeostasia gravitacional do universo.

27 de setembro de 2009

Incisões centimétricas

Tão normal. Vivia nessa normalidade, banal e habitual de todos e de todos os dias. Nada em si se destacava por demais. Simpaticamente tímida. Bem educadamente conversadora. Mediocramente trabalhadora. Nem mais, nem menos. Apenas o suficiente para não ser conhecida mais do que os outros, nem desconhecida como senão existisse. Aquela neutralidade do café com nata no café à porta do trabalho. Da sopa com salgado no snack da esquina. Do pão e congelados no supermercado da rua. Da comédia romântica gasta no clube de vídeo do bairro. E do ritmo biológico do dia seguinte, tão igual ao anterior. Tão igual aos que ainda esperam por vir.

...um centímetro... apenas um centímetro, hoje...

E os dias corriam. E a vida corria. Não era mais feliz do que ninguém, como se os outros importassem mais do que ela. Mas também não era infeliz. Era ela mesma. Era a sua vida. Ela era a sua vida e aquilo que vivia. Que sabia viver. Que sempre tinha vivido. E, se isso não fosse vida, o que seria, então? Não o que via nos outros ou que tentava ver. Muito menos o que acreditava descortinar dos gestos, das histórias, das redes sociais. Como se isso dissesse quem os demais eram. Dizia, de certa forma, que tinham necessidade de serem traduzidos, também eles, apenas isso.

... não muito fundo... tem que ser regular, normal e igual aos outros todos... mesmo que só um centímetro...

Sentia-se confortável consigo. De dia. Vestida. Tapada. A roupa na sua função estética, que podia muito bem ser estática. Era-o. Calças e mangas compridas. A exposição insconsciente sempre a tinha assustado. Não a que parece demasiado exposta aos outros, mas a que se expunha sem consentimento ou conhecimento ou sentimento. E o conforto era o casulo improvisado ao longos dos anos. A bolha de vidros esfumados que a revestia. Que a escondia dos outros, de dia. E de si, sempre.

... quantas incisões pelo corpo? Quantas hoje? Uma... um centímetro... pelo menos um... um por dia...

24 de setembro de 2009

Inquietude


inquieta...
amputada de um membro que desconheço
falta-me um polegar a mais
...

22 de setembro de 2009

Reset

Identificar o nosso Solstício e vivê-lo.
Apanhá-lo como uma onda e seguir na sua crista, na sua ondulação e com ele ondular. Sonhar. Dançar. Aproveitar dele o máximo possível e conhecê-lo. E abusá-lo. E usá-lo. E saboreá-lo. Porque sabe bem... tão bem... E aproveitá-lo.
Rolar na areia. Ouvir o mar. Sentir o Sol. Não comer. Não dormir. Mas sorrir. Sempre.
Mas os Solstícios acabam…
É preciso arquivá-lo. Colocá-lo em pastas e ordená-lo por sentidos. Sentimentos. Sensações. Guardá-lo para já não mais mexer. Mas olhá-lo. Recordá-lo.
Porque nunca se esquece. Nada se esquece.
Adeus...

conclusão complexa de uma conversa simples como de resto o são todas as que são boas e tardias

... outros precisam ser amados para que consigam (continuar a) amar...

20 de setembro de 2009

19 de setembro de 2009

acto do inconsciente para a sobrevivência

agrafo as janelas e as portas que ficaram abertas sem que para isso houvesse intenção consciente na inconsciência da acção e do querer
grito para as brechas por onde passa a luz em ebulição que queima ao toque da memória para que se fechem e calem e espoliem o que há a temer
canto para as paredes porosas espumosas onde se esvai a vontade a conta gotas para exorcizar os casulos onde se formam as borboletas em flor que lutam por viver
desafio o equilíbrio gravitacional em pontas e aponto para a ferida onde coloco sal e espremo e calco e olho de frente até sangrar para sorver como a um leito de um rio imberbe que segue até o mar o deter

17 de setembro de 2009

"They get up early, because they have so much to do, and go to bed early because they have so little to think about."
...
Oscar Wilde
in
The Picture of Dorian Gray, pg 202

15 de setembro de 2009


Agarra no espelho e escreve.
Deixa-te reflectir nessa linha de água estanque.
Procura no vácuo e desmascara o inconsciente.
Diz-lhe que lhe sabes os gestos.
Os jeitos.
Despe-o.
...
E materializa na ontografia das letras o fio dos pensamentos não ditos.

...

14 de setembro de 2009

E saía de casa a correr

“Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” Estava tudo confirmado, na sequência habitual e suposta: o perfume no aparador à porta de casa, geometricamente ao lado das cartas para pagar e dos folhetos de publicidade; a chave do carro tirada da mala e enfiada no bolso direito das calças de ganga; o telemóvel topo de gama, ainda sem mensagens àquela hora; o relógio que tirou da gaveta, sem olhar, não havia dúvidas, era o terceiro a contar da esquerda; e os cigarros, quatro, apenas. E saía de casa a correr. De manhã era praticamente impossível não sair de casa quase atrasada, fazia parte do seu ritual – acordar após o despertador ter tocado sete vezes, com intervalos de quatro minutos cada, de forma a adiar o mais possível a primeira dolorosa acção do dia e levantar-se ainda a dormir e seguir directa para a varanda, nua. O choque gelado da manhã, de Verão ou de Inverno, era o seu primeiro catalisador, a primeira injecção de adrenalina obrigatória e fundamental. Sem isso era como se não tivesse sequer saído da cama. Sem isso, nem valia a pena sair da cama, porque só na varanda, a sentir o frio da manhã na pele, na sua totalidade, centímetro a centímetro, é que o dia começava. Só aí, é que a corrente que irriga o cérebro se ligava e a engrenagem circulatória iniciava o seu percurso habitual, de forma súbita e sobressaltada. O resto, seguia de forma desordenada e banal, como só acontecia àquela hora matinal e em mais nenhuma. A desordem não a adjectivava, tal como o imprevisto não fazia parte das suas preferência. “Perfume. Chave do carro. Telemóvel. Relógio. Cigarros.” E saía de casa a correr.

12 de setembro de 2009

"... Lá de fora vinha o ruído do trânsito ao fim do dia, um ruído de gente e automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias..."
...
Miguel Sousa Tavares
in
No Teu Deserto, pg 110

11 de setembro de 2009

Tricot da vida alheia

Vem! Podes vir agora. Não está aqui ninguém nem ninguém nos vai ver. Salta cá para fora com cuidado para não fazeres barulho e não te magoares. Assim vamos poder estar à vontade e, principalmente, vamos poder falar à vontade sem olhos nem ouvidos demasiados atentos e demasiado conclusivos. São sempre assim os olhos e os ouvidos alheios: cheios de conclusões basilares. Nunca conseguem ver nada para além daquilo que querem ver. Constroem histórias mais rápido que um novelista e o novelo que desenrolam é de tal maneira extensível, que me admira não tropeçarem nele em toda a sua extensão. Tropeçam outros que se deixam enrolar na conversa ao conversarem sobre o que não lhes diz respeito. Respeito quem não tricota esta teia alheia e nos deixa à vontade. Aos dois. Gosto de falar contigo. Gosto que gostes de falar comigo. Mas não gosto dos olhares indiscretos. Os de soslaio. Os diagonais. Não gosto que me julguem só porque não percebem. Perceberiam que estás aqui? Que és real? Que sempre o foste? Perceberiam se lhes explicasse que estou a falar contigo mesmo que, através dos seus olhos, não te vissem? Perceberiam se lhes explicasse que estou a falar contigo mesmo que, através dos seus ouvidos, não te ouvissem? Perceberiam… à sua maneira…

9 de setembro de 2009

Como se fosse a primeira vez

Aproximou-se da porta, com passos de lã. Suaves. Mudos. Rasantes. Um pé de cada vez, a medo. Com medo de acordar o pó que se desviava à sua passagem. Com medo que o Mundo se apercebesse da sua presença, da sua existência. Evitava até respirar. Fazia-o com intervalos cada vez mais espaçados, de forma a não desperdiçar um único barulho, nem sequer o do ar à sua volta. A não desperdiçar o ar, sequer. A porta era logo ali. Tão ali. Já ali. E mesmo assim, tão longe, cada vez mais longe à medida que se aproximava. O êxtase. A excitação, como se fosse a primeira vez. Era sempre a primeira vez. A única. Porque acontecia, existia, mas passava. Não se repetia. Nunca se repetia. E cada nova vez era uma nova aventura. Isso mesmo, aventurava-se cada novo dia numa nova aventura. E cada dia se sentia mais inebriado, ébrio perante a ferocidade dos seus sentimentos, das sensações que lhe causava - das físicas. A porta. Os sons. O barulho. Os nervos. Os tremores. A ansiedade. A descoberta. O ser descoberto. E a coragem para lá chegar. Já rente, a sentir o cheiro cáustico do suor das mãos entranhado na madeira da porta. Simétricas. No mesmo local milimétrico onde a erosão tinha desenhado o leito da mão. Da sua. Suada. Sapuda. Servente do vício. Parado. Os olhos impenetráveis. Fixados, não se desviavam enquanto a mão, a mesma, rugosa, usada, depravada, abria o óculo da porta. Estático. Era aí que ficava. Estático a ver as pessoas passar na rua, nas suas vidas que aglutinava como dele. E ali ficava com uma lealdade religiosa de confessionário. Com uma depravação obstinada de filme pornográfico. E deglutia. A saliva pela garganta seca. E deglutia. A passagem dos transeuntes. Efémera. Pelas suas mãos. Molhadas. Pela sua vida. Vazia. Mas só dele. E em nada dele.

6 de setembro de 2009


"... Nisto, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem - esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno..."
...
Miguel Sousa Tavares
in
No Teu Deserto, pg 15

3 de setembro de 2009

[Silêncio]

O silêncio incomoda-te? Sim. Incomoda. Não me sinto à vontade. Contigo. Em silêncio. Eu incomodo-te? Nunca. Apenas o silêncio que ainda não sei aceitar. Contigo. Desenvolve-se… com o tempo. Com o à vontade. Com a vontade. Com o que se conhece… do outro. Ou com o que se deixa conhecer.

[Silêncio]

É das coisas mais difíceis de partilhar… o silêncio?... sim… sim. O Silêncio. É um espaço íntimo, demasiado íntimo, que não se consegue partilhar com qualquer pessoa. Que nem sequer se quer partilhar com qualquer pessoa. O meu silêncio é só meu. Meu e de quem está comigo a viver o que não se diz, a pensar o que não se ousa, a querer o que não pode. No silêncio criam-se mundos… só nossos… tão nossos…

[Silêncio]

Gosto de estar em silêncio. Contigo. Gosto do teu silêncio para mim. Tão óbvio em mim. Contigo. O silêncio? Os Mundos. Criados? Ficcionados. É no silêncio que se ficcionam os Mundos, as Vidas. À noite que crescem, debaixo das Estrelas e da Lua, com vinho e conversa. Os Mundos? Os sonhos… Ficcionados? Sonhados. Como todos os sonhos. Quanto tempo duram… os sonhos? não duram. São-no, enquanto existem. Enquanto são sonhados. Até que se acorda. E fica a lembrança do sonho. No silêncio. Partilhado. Distorcido. Turvo. Como o são todas as memórias. Moldáveis. Que são recordadas apenas no silêncio.

[Silêncio]

Apetece-te falar? Não, agora prefiro ficar em silêncio. Comigo.

[Silêncio]
"... cada um só recebe mediante a sua capacidade de receber (...) ninguém suporta receber mais do que aquilo que é capaz de devolver - sob a ameaça de pertencer àquele de quem não cessa de receber."
...
in
A Moeda Viva, pg 61

2 de setembro de 2009

O Tempo Temporizado


A Temporização do Tempo

Parece que Setembro chegou. Os calendários assim o dizem e, por norma, não enganam, nem se enganam, sejam eles Romanos, Maias, Egípcios ou Chineses, de outra maneira não os seguiríamos da forma cega e ordeira que fazemos. A fidelização da nossa Vida à ascensão da numeração, presa aos segundos, minutos e horas que se agregam em dias, meses e anos, sem que questionemos, por uma vez que seja, a sua lógica, a sua existência, a sua sequência. Interiorizamos e utilizamos os mecanismos definidos, impostos do Tempo como genética da nossa existência, em que as células não envelhecem com a sua durabilidade, mas sim com o tiquetaque do relógio, cronometrado em nanossegundos. E aplicamos toda a nossa subjectividade a esta contagem. E tornamo-nos dependentes. E somo-lo, de facto: dependentes da soma ou subtracção dos dias, dos que faltam, dos que já passaram, dos que ainda hão-de vir e de todos os outros. Mais uma vez, distraímo-nos com o que não é visível nem palpável. Mais uma vez, isso condiciona a nossa Vida. Condiciona-Nos. Direcciona-Nos. Subjuga-Nos. As Nós, que sem querer, já estamos em Setembro, sem tempo para pensar como aqui chegámos tão céleres. Nós, que nem sequer daqui saímos, de tão temporizados que estávamos.