14 de dezembro de 2010

Como nos sonhos

Saltou a vedação e correu. Arame farpado rasgado no tecido desfiado que lá ficou. Lá. Pedaços de fibra e algodão e carne e sangue. Suor que escorria enquanto corria. Sal líquido reluzente em prisma com o Sol. Entrou com a mão dentro da cabeça e arrancou a dor lancinante. Cefaleia-enxaqueca que não despega nem descola, nem fica para trás. Dilacerante. Correu para fugir e deixar de fingir. Analgésico ineficaz que seca o corpo e a voz. Analgésico atroz que prende com pionés o asgar.
Saltou a vedação e correu. Como nos sonhos, sem velocidade. Preso ao chão que lhe foge e de quem foge. A pressa. A taquicárdia. O medo. O acelerar. Como nos sonhos, sem conseguir. Força impulsionadora nos músculos inertes. Potencial de acção com falta de urânio. Mover-se sem conseguir. Chegar mais além sem sair do sitio. Como nos sonhos: voar de bruços. Nadar sem asas. Para além de flutuar ou pairar. Ícaro derretido, como o mágico Escocês. A parésia. Os alvéolos nos lábios para tentar respirar.
Saltou a vedação e viveu.

Sei-te de cor

Por que te sei. Não de cor. Mas sei. Sei-te os passos e as acções. Conheço-te os pensamentos e as intenções. O cheiro que fica e não vai. O toque. O toque... não sai. Sei o que queres antes de ti. Sei o que precisas. Não é de mim. Há em ti uma intermitência agri-doce. Eu, prefiro um a seguir ao outro. Não de ti.
Oiço ao longe os teus passos e adivinho-te o caminho. Seguros e sorridentes. Sei o teu número. A tua peça. Mas o palco é meu. A pele os pelos o pululuar de agitação. Passaste do estômago para o coração. Daí, para o pensamento. Sei-te aí: guardado. Seguro. Tenho-me aqui. A seguir. A sorrir. Reconforto-me naquilo que sei e gosto: ... Por que te sei. Mas sei-me melhor a mim!

30 de novembro de 2010

Cobiça


22 de novembro de 2010

O preço do jogo

Vamos ao jogo!
Vens ao jogo?

O tabuleiro está montado. Está sempre montado. Trás as peças. Xadrez! Vamos fazê-lo de forma contemporânea. Dandiesca. Trás o Eça e o Wilde. Xerez para beberem em copo de cristal. Bohémio. Não há outra maneira sedutora de o jogar. Monta as peças. Como um quadro. Como num filme. Os peões na frente. O protagonista atrás. A torre ao lado da Rainha e do Rei. As damas na outra ponta. É o teu jogo. Aguardares que a Rainha se dê a comer. A de copas. Roliça. Opulenta. Suculenta. Marie Antoinette no seu esplendor. Como nos contos. Ponto por ponto ficas no jogo. Lábios vermelhos desenhados. Que Maravilha, Alice. Esconde-te com requinte no chapéu enquanto a cabra, cega, corre atrás de ti. E sobe, sobe que sobe na tua própria pontuação. Adiciona ao espólio troféus. Monta bem? Dama dupla. King size. Corre de uma fiada à outra. Come de uma acentada. Não sobra nada. É o jogo. Peças. Peões. Paixões. Estilhaços. Experimenta-me. Dá-te. Aumentas de tamanho e és o papão. Come a papa, Joana. Come. Uma, duas, três. O trunfo é paus. Espeta a espada ao Rei. Tentador?
Ainda queres vir ao jogo?

Xeque-mate.

14 de novembro de 2010

De novo, do início, como novo

A adoração pelo perfeccionismo como catalisador de uma vida. A impossibilidade de dirigir essa mesma vida se não segundo um valor matemático, em que não há planos nem rectas côncavas ou convexas. Em que o espaço não se torce nem dobra sobre si mesmo. Em que as leis da física, seculares, servem como verdade absoluta. A sua verdade. À sua maneira. A sua física. A sua quântica. Recta! Medições milimétricas a régua e esquadro. O compasso para confirmar a sua razão. E as marcações a tinta da china, para não deixar lugar a enganos. De cinco em cinco milímetros, tick! Mais cinco milímetros: tick! Tick! Tick! Marcado como uma folha de cálculo. Uma prisão a preto e branco em que as linhas, rectas, perfeitas, milimétricas, verticais verificam que os pontos unem. A sua certeza. Recta.
Tudo tem o seu lugar no universo. Tudo. No seu! São leis! É a ordem.
Esterilidade. E um bisturi. Tiras de pele contínuas, equidistantes, nunca somente e apenas semelhantes. Iguais! Gémeas de si mesmas do princípio ao fim. Carris de comboios rápidos retirados do seu lugar com luvas de ourives. Numeradas em romano para nunca saírem do seu lugar exacto na imensidão do universo. Lágrimas de admiração para as lubrificar com o seu próprio ADN...

... agarrou-as, a todas, as tiras, num único novelo. Nem vértices, nem pontas, nem soltas, nem horizontalidade. Romanos misturados com poros e pelos e paixão. Misturou-as e formou um novo abecedário.

7 de outubro de 2010

Nada... simplesmente

Nadar numa piscina a meio da noite. Na piscina. Naquela. Especificamente. Não é a imagem que se lhe cola ao pensamento. É a sensação. É a água pelo corpo. Esguia. Fria. É a ondulação lenta e ritmada das braçadas sequenciais. O serpentear do ruído marítimo. Os declives. As inclinações. Os socalcos formados pelos altos e baixos de si e do resto. A geografia ergonómica em que se acoplavam. Ela. A água. A vida.
Suster a respiração e seguir. Avançar de braços rectos e cortar o momento. Furar o caminho. Não respirar. Um, dois, três, quatro... doze, treze segundos. Seguidos. E chegar. Tocar com a mão para marcar o momento e com a mão continuar a escavar. Sem respirar.
Abrir os olhos e ver as estrelas. Olhar à volta e tudo luzir. A noite clara feito dia. São as lamparinas das mil e uma noites. Mil e uma lamparinas numa noite mais fria que gelo. Mais fria que a água. Envolta em slofane de cloro. Azul-transparente. Azul-sem-cor. Neutro. Os olhos obnibulados após cada pestanejo. Sem respirar. Um, dois, três, quatro. Pestanejo... doze, treze segundos. Seguidos. Pestanejo... vinte e oito, vinte nove... Não respira. Nada. Flutua. É um nenúfar na sua piscina. Nenúfar azul-noite. Azul-sonho. Nada... numa piscina a meio da noite. Especificamente.

6 de outubro de 2010

"Lá vai ela, formosa e segura..."

5 de outubro de 2010

Expiação

s. f. acto ou efeito de expiar; cumprimento de pena ou castigo; penitência; pl. preces para aplacar a cólera celeste; (Lat. expiatione)

Expiação


27 de setembro de 2010

It

É sempre igual. Sempre... Segue por uma corda. Recta. Rígida. Por rectas e curvas. Em espiral. Segue como um equilibrista chinês que nunca pisou chão firme. It, chamemos-lhe. Não é Ele nem Ela. It. It caminhava hirto. Rígido. Quebradiço. O chão tinha a largura de um palmo. A planta era apenas do pé. A visão era da mesma largura. Dez centímetros de corda enrolada. Dez centímetros de visão periférica. Para a esquerda. Para a direita. A corda tinha curvas. Levada pelo vento curvava as tempestades. It. Andrógino. Não sentia o vento nem a chuva. Só não podia olhar para trás. De frente as cores corriam olhos adentro. Como o Mar rio adentro quando a Terra se encontrava de pernas para o ar. Mas mesmo aí seguia em frente. It. Cabeça para baixo, ligado pela planta à corda. A visão era cónica. A perspectiva era sua. Esguia. Escorregadia. E sempre, sempre quebradiça. A visão, como os passos, só seguiam. Retrocediam apenas de costas. Fugiam de trás para a frente. Porque de trás, onde a vista não olha. Onde o olho não vê. É a preto e branco. E sempre igual. Sempre...

13 de setembro de 2010

Pedaçando

É o calor abrasador que leva a esta letargia. O fresco do cimento cinzento-brisa espevita as fibras musculares e aperta com os neurónios. Não estão habituados. Sempre trabalharam voluntariamente sem comando ou direcção. Ao abrigo de uma qualquer emenda sempre se impuseram perante a sua vontade. Até terem sido arrancados à casa mãe.
Os passos são múltiplos no cinzento-brisa. Os meus estáticos. Atolados até aos joelhos. Barro seco nas rótulas imóveis e geladas. É da brisa. Sentada no chão. Cinzento-Tate. Brisa-Britain. É o odor da arte que me faz repensar. Recriar os passos aprendidos. Odor forense. Redescobrir onde ficaram todos os pedaços desmembrados. Salpicados por aí, como uma tela. Miró apanhou alguns e colou-os às riscas e riscos e pingos. Dalí derreteu-os. E aqui, na Tate, no cinzento-brisa do chão, os odores contemporâneos apenas me podem avivar a memória.
O ventrículo a bater no meu lábio espicaça-me a vontade. É o esquerdo. A força do corpo sopra aqui. Jorra. Fui pedaçada por etapas. Em tempos uma mão a mais. Borboletas que não me competiam. Agora um cimento nos pés. Uma letargia no corpo. Um pensamento que não é meu. Ao me pedaçar, perdi-me. Deixei-me roubar. Ou ter-me-ei dado?
Pondero regressar e pedir para ser pedaçada de novo.

*Pedaçar: acto de juntar por meio de cola humana partículas de corações e almas. (Verbo definido pela Lina e e tri-partilhado com a I)

9 de setembro de 2010

折り紙 do olhar

Deixa-me ler-te nas entrelinhas. Nas estrelas. Nas linhas. Nas minhas que traço com vontade dissimulada. Mascarada. Como se não quisesse. Deixa-me ler-te entre as minhas. Linhas. Nas estrelas à noite quando brilham. Nas formas que formam. Em linha. As estrelas. As minhas. Nas histórias que contam só de olhar. Nas histórias que se constroem só de imaginar. Deixa-me olhar-te por entre as linhas. Por entre os anos-luz. Por entre as estrelas. Minhas. Desejadas. Nas entrelinhas. Deixa-me...

27 de agosto de 2010

Beija-me agora


25 de agosto de 2010

A arte do agora

A cozinha não era muito grande. Quadrada mas não muito grande. Uma natureza morta presa no século passado. Uma casa Queiroseana transladada para uma cozinha do agora. Cortinados pesados e escuros. Papel de parede grosso, de flores secas e sem cor. Tamanho grande, ao contrário da cozinha. Até um candeeiro-candelabro. Cristal da Bohémia em gotas por cima da cabeça. Luz cintilante e redopiadora colada às quatro paredes. Como um céu. A mesa do chá, de três pés, de bola de cristal e cartas e búzios a um canto. O napron branco imaculado por cima. Orificios de renda meticulosamente trabalhados.

...meticulosamente...

A arte culinária estava decidida há muito. Era pouco mas há muito. O barulho dos tachos e panelas vindos do fogão, ao lado do candeeiro de pé alto, era praticamente surdo. O vapor apenas envolvia a cozinha com o calor. A temperatura que aumentava a par com os minutos. O relógio de parede. Mogno antigo e imponente com um traço de humidade. Marcava treze horas e sete minutos. O marcapasso era rígido e cirúrgico.

... cirurgicamente...

A mesa estava posta. Toalha de linho a fazer conjunto com o napron. À mão. Assim trabalhados. Os pratos gastos pelo uso apenas deixavam prever a sua idade através das ranhuras quase rasuradas dos bordos. Talheres de prata de família, reluzentes de nunca terem sido usados. A faca de cabo de crocodilo vinda de África, do interior negro e denso da selva africana. O umbigo retorcia-se só de a ver. Acutilante.

... acutilantemente...

Treze e vinte e oito. O barulho dos carros e das pessoas e dos animais e das lojas e do mundo e da vida e do vento e do fogo em nada pertenciam a este cenário controlado e previsível. O vapor já não vinha do fogão. A temperatura vinha do prato e do corpo e da respiração. Batatas sem casca, novas. Ovo cozido partido em quatro, amarelo e branco de caseiro. Brócolos verde intenso que apenas condiziam com a cor vermelha ardente da mão que estava dentro do prato. Vermelho sangue vivo. Novo. Do momento.

... Silenciosamente e com a mesma calma com que preencheu o prato de amarelo batata, de branco ovo e de verde brócolos, a faca crocodilo oscilava suavemente para jusante e montante. Ao nível do punho começava a surgir um rio eritrocitário de vermelho intenso. Meticulosamente, foi cortando a pele a carne o músculo as veias as artérias os tendões os nervos até chegar ao osso. Cirurgicamente, mais nervos tendões artérias veias músculos carne e pele. Acutilantemente. Recostou-se na cadeira. Era arte. Arte conduzida pela sua vontade sem dor. Deixou-se ficar a sorrir para o prato antigo com condimentos do agora. Apenas uma gota vermelha na toalha branca imaculada que fazia conjunto com o napron. À mão. A mão. Trabalhada. O resto do vermelho, pintava o chão e deixava-se levar pela corrente casa fora. Como um rio em direcção ao mar.

1 de agosto de 2010

Voltei

... subiu os dois últimos degraus praticamente sem fôlego e meteu a mão no bolso. Agaixou-se com o suor a pingar da testa, com o sal a misturar-se com a saliva, com o rimel com a água e encontrou. No exacto sítio onde as tinha deixado. Afinal, de todas as vezes que lá tinha regressado, em nenhuma delas precisou de lhes mexer. As chaves continuavam lá. Exactamente. E muitas vezes havia regressado. À sua procura. Não de outros. De si.

Fechou a porta segura. Segura de vontade. Segura que quando voltasse, tudo estaria na mesma: de cabeça para o ar. "Até já".

Abriu a porta. Entre o medo, a certeza e o meio. A chave escorregou-lhe da mão e desapareceu. Entre o suor, os tremores e a relutância, ao centro, entrou. O cheiro era o mesmo. Sempre o cheiro a marca territorial que hierarquiza a cronologia das histórias. Um misto de cheiro de hotel, asséptico, com perfume de homem, forte. Podia ter entrado de olhos fechados que não haveria dúvidas... novas... Sentia a distância das paredes equidistantes e imutáveis. Betume transparente com janelas sem vidros. Vitreo para fora. Opaco por dentro. Deu dois passos. Resolveu não abrir os olhos. Entre o jogo, o prazer e a certeza, à direita, desviou-se do candeeiro de tecto que ainda estava apagado. Eram dois. Esquerda e direita. Num equilíbrio siamês de art nouveau. Entre o habitual, o estranho e o picante, à esquerda, o sofá. O mesmo. Vermelho fogo e moldado. Não tão acessível, permanecia com as almofadas de urtiga no canto da sala, em cima, por cima, da cabeça. Ao lado da mesa, onde por baixo, em cima, estavam escritos os pensamentos. Os que tinham ido. No chão, ao canto, do tecto, um aranhuço trabalhava na teia intrincada que era a sua vida. A chave estava lá, lá dentro. Bastaria uma vassoura para lá chegar. Para varrer todo um mundo que tinha ficado de pernas para o ar à saída, mas cujo tempo e distância conservaram até... à entrada.

"Voltei!".

11 de julho de 2010

Fetal

Enquanto se mexia, enquanto se tentava encaixar, à procura do seu lugar, da sua posição, da sua composição, do outro lado, os relevos eram notados como espelho: em simétrico. O antónimo do seu movimento. Se se esticava, criava um socalco no avesso. Se se encolhia, montanhas e vales se formavam, de um verde intenso e vibrante, ofuscante, como os campos na primavera. Os recifes, as fendas, os vulcões eram mera consequência da falta de espaço que cada vez mais sentia. Apertado, os metros. Curto, o tempo. Líquido, o sabor. Flutuava. Em câmara lenta, movimentava-se a par com as vibrações do vento que nunca deixava de soprar. Aquela brisa que o mantinha acordado, atento, vigil. Vagal, o reflexo da velocidade no seu microclima. Pouco a pouco as contracções a diminuírem, como o espelho dos vales. O espaço difuso, confuso. O oxigénio, rarefeito... Estava na hora. A pouco e pouco, enquanto se mexia, enquanto se tentava encaixar, à procura do seu lugar, da sua posição, da sua composição, do outro lado, o útero expurgava o seu conteúdo! Expurgava-o! Estava na hora... na hora de renascer.

4 de julho de 2010

Novelos de si, só

Sentou-se.
No chão.
Cruzou as pernas uma na outra num nó de marinheiro sem mar. Sem barco ou vela para velejar. Mas boiou. Sentada no chão, flutuou. Sentada no chão deixou-se levar pelas vagas ímpares. Deixou-se levar pelas horas vagas. Vazias de tão transbordadas de pensamentos. Com as pernas cruzadas. Por longos momentos...
Os pés.
Tão perto como distais. Fortes. Animais. Olhou-os como sempre. Os mesmos. Os que sempre a levaram a tomar todas as decisões. Os mesmos que criavam raízes de carvalho nas florestas assombradas dos pesadelos. Novelos, foi o que pensou. Novelos.
A vê-los.
Ficou. Embalada na sua própria ladainha inata. A sua nata. Trauteou cada nota à sua maneira. Ao seu jeito. E sem jeito ficou com o tempo que demorava a enrolar o novelo que sobrevivia dos nós que, desfeitos, se desfaziam perante os seus olhos. Novelos de si mesma. A partir dos pés. Pedaços de pés que das unhas se enrolavam em circulares irregulares. Proporcionalidades directas: quanto menos unhas mais bolas; quanto menos dedos mais novelos.
E deitou-se.
Continuou a enrolar-se a si mesma para se guardar arrumada por cores formas tamanhos pesos medidas despedidas desmedidas...

Tudo o que precisaria de si, só. Novelos de si dentro de garrafas a boiar. O mar: nas suas vagas ímpares encarregar-se-á de a resgatar.

1 de julho de 2010

D-i-s-t-â-n-c-i-a

Por vezes, dou por mim a pensar na distância. Distância. D-i-s-t-â-n-c-i-a. Podia ser outra coisa qualquer, mas na distância, especificamente. Com a mente. À distância. Na distância.
D-i-s-t-â-n-c-i-a.

Estás a divagar... de novo...

Dou por mim a pensar no que ela significa. Na distância. O que é a distância?

Como definição? Não...

...como é que se mede a distância? Em metros? Ou nos quilómetros em que eles se transformam se esticarmos um plano até ao infinito. Até ao seu limite. Até ao precipício... Até os quilómetros serem galáxias perdidas no universo submergidas em extensos buracos negros à prova do som e da luz e do tempo e dos sentimentos... Medir-se-á em tempo? Contar-se-ão os intermináveis minutos e a sua luta para se perseguirem uns aos outros, incessantemente, ininterruptamente, numa luta que acabará sempre... a seguir?

...

Silêncio... É isso? Mede-se a distância em silêncios?

Não em quantidade. Nunca em qualidade....

... mas em intensidade.... Medem-se em intensidade...

Os silêncios?

Não... "Medem-se" no plural, tudo o que na distância de um silêncio não é dito, "sentem-se" no silêncio que a distância criou...

... que roubou...

[agarrou numa tesoura e cortou tudo o que fosse quantificável. Transformou em farrapos papel, tecido, pele, vida, água. Dentro do copo triturador, verteu o resultado que jorrou janela fora, no topo do mundo para que fosse varrido pelos ventos e tempestades para que estes se dividissem e diluíssem até nada serem, como o infinito, que se persegue sem se achar, que se auto analisa sem se perceber e caiu, derrotada. No chão. No mesmo sitio. Na mesma hora. Na mesma situação...]

No teu silêncio sei a tua distância. A distância que estás de ti mesma, dentro de ti. O mundo... mera estética que adorna o ser.

(e agarrou em todos os relógios e máquinas e utensílios qualificáveis de quantificar. Guardou-os onde sabia que iriam ser encontrados... assim que fossem precisos, de novo... assim que a distância quebrasse o silêncio...)

[e o corpo ficou, inerte, tick-tack-teando, como uma natureza morta, como uma fita métrica estendida...]

29 de maio de 2010

Nada como o jogo que nos tenta o olhar

"Chiu, não faças barulho agora: o filme vai começar!" E deixou-se ficar. No mesmo sitio. Na mesma cama. Atenta. Redobradamente atenta aos fotogramas em movimentos acelerados que corriam do outro lado do vidro convexo. Ou seria côncavo? A maleabilidade do plano visual em nada alterava a realidade que pensava observar através das lentes. Também elas maleáveis. Também elas adaptáveis. Também elas mutáveis naquilo que viam. Que liam. Que avaliavam. A concavidade apenas conferia à realidade a plasticidade que a cobria. A arte. A mão que toca e transforma o que se vê. Real a lente e os olhos. Adaptável o observado. As múltiplas personagens não permitiam descortinar quem era era quem. Em todas as transformações que decorriam, que se exibiam, apenas os corpos se mantinham. Apenas os corpos, nas suas danças em dissimulado movimento, no somatório das articulações permitiam adivinhar a constância estética do observável. De todas as personagens, a dificuldade estava em identificar a sua, qual peça de teatro em que se persegue o elemento identificativo. Mas mesmo aí os labirintos são íngremes e sinuosos, difíceis de contornar mantendo a mesma aparência. De novo a estética. O adorno do que se mostra para camuflar a confusão mental labirinticamente camuflada. Multifacetadas é como as personagens são. Adaptadas às paredes com olhos que as encapsulam. Que as deglutem sem degustar na ânsia do querer. A sua era única. Sabia-o. Bem o sabia. Sabia-o por demais. Tal como bem sabia a história. Não o final! Esse, ainda não o tinha vivido. Mas o meio... e o princípio? A colisão molecular que em quilómetros tentam simular. A quântica fisicamente simulada. Simulada? Não! O princípio não é simulável. O big bang é inato e não comandado. Controlado, apenas o decorrer... da história. Saborosos, os movimentos. A dança. A expressão. A intenção. O melhor de tudo. O que podia observar naquela cama sentada. No aquário instalada. Redondo. Cujo peixe vermelho há muito decidira abandonar. Nada como o jogo que nos tenta o olhar. Tudo.

16 de abril de 2010

Porque hiperbolizam sempre.... de noite

Cheira de novo a terra molhada. Aquele cheiro das primeiras chuvas. Intenso. Denso. Envolvente. Daquelas que já sentimos saudades de não chover há tanto, tanto tempo. Em tempos. De noite cheira mais, não te parece? É a hiperbolização nocturna. A exponenciação dos cheiros. Dos vultos. Das sombras. Dos desejos. Dos medos... Tudo à noite se escreve com letra maiúscula. Noite, palavra esdrúxula que tudo abrange. Pelo que cobre. Que tudo empardece. Pelo que esconde. Onde? Nas esquinas. Nos cantos. Nos recantos. Nos sonhos e encantos. Nos lençóis... Por dentro. E lá fora? Embora escuro, clareia. É a luz do silêncio. A clarividência do sossego. Paz e pausa................................................................................................................................................................... Ouve. Ouve a noite à tua volta. Silenciosa e viva. Ouve....................................................................... Vê como te está próxima. Aproxima-te. Sente..................................................................... Sente a noite. Ouve o bater do coração. A pulsatividade do negrume e das luzes. Pirilampos. São como pirilampos. Cheira a chuva ritmada. A terra molhada. Deixa-a escorrer.............................................................
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. . . . . . . . . . . . . . porque a noite cheira a ti.

15 de abril de 2010

"A stranger in me"

Nunca conhecemos verdadeiramente ninguém, pois não? Em modo afirmativo e não retórico: nunca conhecemos verdadeiramente ninguém. O próprio ninguém pressupõe o nada e do nada, nada se conhece. Muito menos do alguém que, transformado em ninguém se camufla no agente passivo, no elemento que cruz e passa. Invisível. Irreconhecível. O nada que de nós sabemos. Que dos outros pensamos. Que de nós idealizamos. E dos restantes... imaginamos. O conhecimento do que queremos. Ninguém. Alguém. Nós. Todos e nenhuns. Encaixados na mesma roldana. No mesmo movimento circular e industrial. Universal de tão indigente. Mãos com pés. Cabeça com pernas. Corpo... ao ar. Um uníssono. Transfunde a pele e a cor. Hemodialisa o ser. Depura o Eu e o Tu. Sobra o Ele e Ela. Os Os e as As emoldurados num tríptico social. Visual. Informal. Rega a tela com água e resta o esqueleto. Está lá o pano. Não é engano. É visível. Perecível. Enfia a cabeça na fotocopiadora e distribui as cópias. Umas com bigode. Outras com baton. Passa... as mãos nos pés. Na cabeça. Nas pernas. Passa-as. Passa-te. Invisível. Irreconhecível.

7 de abril de 2010

Deglutição

A inevitabilidade do poder do íman. A atracção sem limites das forças, opostas, que se atraem, que se traem e complementam. Que se aumentam. E colidem, numa simbiose longe de ser perfeita, rarefeita, como o ar suado que sobra desta deglutição. É o que os vícios fazem: deglutem. Deglutem sem degustar as carnes fracas, as partes intactas que sobejam aos molhes. Servido em bandejas de prata, com fita vermelha, como nas dependências das casas senhoriais. As forças sem atrito dos gumes que roçam na carne. Cotovelos gastos e ruçus de ajoelhar. Hábitos e vestes. Virtudes e despes. Porque, opostas, as forças ganham. As vontades falham. E os vícios, sustentáveis e inevitáveis... garantem sempre o seu lugar.

6 de abril de 2010

O cheiro do toque com o olhar

Pausa. Play-play. A double click. Assim mesmo. Hoje, é assim que vai ser. Um play dividido pela metade. Imagens a 256 bits a escorregar pela tela que é a minha vista. Quero tempo para ver tudo com atenção. Quero tempo para observar o mundo. Devoção. Em vez de o ver correr à minha frente... Este arrepio que me percorre as costas por não poder agarrar o que não se vê. O que não é palpável. Apenas imaginável. Quero tempo! Quero ver! Quero absorver as pessoas. Hoje, não quero conclusões. Quero apenas factos. Observar os actos. A metade da velocidade. Analisar como se mexem. Como andam. Acima de tudo, como olham. Para onde olham. E como tocam, com o olhar.

O toque com o olhar é diferente. Indigente. Toco sem ver, para sentir. O toque com o olhar é para confirmar. É para enganar, quem se toca, que não se quer tocar.

Rewind... toco de novo para eu ver. Os pelos de quem toca e se sentem nos dedos de quem é tocado. Vi o sorriso atravessar o olhar do toque. E, sem se aperceber, cheira o toque, para confirmar: existiu.

Pause.

Consigo ficar assim, de fora, a imaginar as sensações e emoções e diversões. Só pelo prazer de observar o jogo. De fora. Com num filme. Como numa tela. Mas mesmo aqui ao lado. Aqui dentro. Tão perto...

Stop.
"Então, fechei os olhos com força e fixei-me no que via. Esta era uma das coisas que fazia desde pequeno, que tinha descoberto por acaso e que imaginava ser eu a única pessoa a fazer no mundo. Fechava os olhos e via. Via o que se vê com os olhos fechados. Via o negro dentro de mim e via os pontos de luz que o quebram, as vagas de luz, as figuras abstractas de luz, os vultos de luz, as sombras de luz dentro da luz do negro dentro de mim. Isto é o que se vê quando fechamos os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que o habitam."
...
José Luís Peixoto
in
Uma Casa na Escuridão, pg. 20

5 de abril de 2010

Enquanto alternas entre uma perna e outra

Há quanto tempo é que estás aí a espreitar? Não te vi. Nem sequer te ouvi. Essa mania de olhares sem falar. Pestanejos e saliva nos lábios. Em câmara quase lenta. Apenas isso. Há quantas horas estás aí? Estás inodoro. O teu cheiro denuncia-te sempre. Os cheiros denunciam tudo. As horas. Os sítios. As vontades. As histórias nascem daí. Dos cheiros. E das vontades. Que vontade de ser transparente. Da mesma maneira que és inodoro. Passar invisível mas continuar a ser. Não ser vista mas existir. Na memória? Não… insuficiente. Existir.

Falavam-me em pessoas que saiam dos seus quadros e continuavam a ser até se diluírem. A imagem não me saiu da ideia. Mudar apenas de quadro. Conseguirias continuar a observar? Por vezes só se observam as pessoas nos quadros em que moram. Nos outros, os emprestados. Ocupados. Perdem a capacidade. De existir. De observar. As pessoas. Não te vais fartar, pois não? Vais… Vais deixar de ter saliva. Vai passar a saber a sal e a gretar-te os lábios. Só com mais saliva é que vai desaparecer. E não é no olhar que elas se juntam. Só com o olhar as gretas são grutas e o sal, ácido. Sulfúrico. Continuar-te-á a corroer. Na memória? Não… existes…

24 de março de 2010

Porque as estrelas também riem

«- As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para os viajantes, as estrelas são guias. Para outros, não passam de luzinhas. Para outros, os cientistas, são problemas. (...) Mas todas essas estrelas estão caladas. Tu, tu vais ter estrelas como mais ninguém...
(...)
- À noite, pões-te a olhar para o céu e, como eu moro numa delas, como eu me estou a rir numa delas, para ti, é como se todas as estrelas se rissem! Vais ser a única pessoa do mundo que estrelas capazes de rir!
(...)
- E quando te tiveres consolado (porque acabamos sempre por nos consolar), hás-de sentir-te muito contente por me teres conhecido. Hás-de ser sempre meu amigo. Vai-te apetecer rir comigo. E, às vezes, sem mais nem menos, vai-te dar para abrir a janela, só porque é bom... E os teus amigos hão-de ficar de boca aberta quando te ouvirem rir a olhar para o céu. Mas tu dizes-lhes: "Pois é! As estrelas sempre me deram vontade de rir!" E eles ficam a pensar que tu estás maluco.»

Antoine de Saint-Exupéry
in
O Principezinho, pg.88

23 de março de 2010

22 de março de 2010

Do lado de cá

Do lado de cá olho. Olho e recordo. Recordo e penso. Penso e sorrio que tudo o que olho está lá. Aqueço com o olhar e com o Sol. Com a memória e o rol de pensamentos que enrolo. Sorrio ao enrolar cada um deles. Sorrio ao recordar que, com o olhar, pensei em momentos, desenrolei pensamentos, e esses, ninguém os pode tirar.

Do lado de cá olho. Olho e sorrio. Sorrio sempre. A imagem em fotogramas que corre e escorre. Que decorre a trinta e três rotações, pelo meu olhar. Ao pensar. Ebulições de areias remexidas. Emoções a peugadas, lá, inscritas. Palavras não ditas. Emoções sentidas. Que correm com o tempo. Mas marcadas, como que tatuadas. Cá.

Do lado de cá olho. Olho e sei. Sei que o Sol aquece. Sei que o corpo estremece. Sei que a memória não desaparece. Porque o Sol vem aí…

21 de março de 2010

Do lado de cá


16 de março de 2010

Equilíbrio

s. m. estado de um corpo que se mantém, ainda quando solicitado ou impelido por forças opostas; fig. igualdade; harmonia; - estável: o de um corpo que, desviado ligeiramente da sua posição, a retoma quando cessar a causa do desvio; - indiferente: o de um corpo que fica em equilíbrio, qualquer que seja a posição em que o coloquem; - instável: a de um corpo que passa logo a tomar outra posição desde que o desviem da posição primitiva; estado de -: estado em que as propriedades observáveis de um sistema não variam com o tempo. (Lat. aequilibriu).

Anda. Hoje, escolhi-te a ti para dançar.

Anda. Senta-te aí. Levanta-te dessa cadeira imaginária onde permaneces inerte e senta-te ao meu lado. De novo. Como dantes. Hoje, apetece-me falar e escolhi-te a ti. Assumo-me perante mim mesma que te escolho a ti para me ouvires. Assumo-me a ti que é contigo que me apetece falar. Assumo-me ao Mundo que me quiseste ouvir.

Anda. Tem que ser ao meu lado. Nunca atrás. À frente também não. Deixa-me olhar para ti enquanto falo, mas dá-me a desculpa para não o fazer quando me convém, porque não posso. Porque não quero. Talvez porque não consiga. Porque tenho que olhar de frente. Para o Mundo. Que é meu, todo meu, sempre que o quero assim. Para mim. Mas falo-te nos olhos. Para dentro. Para ter a certeza que ouves, que me ouves. Olhos adentro.

Anda. Apetece-me falar de nada. Do nada habitual. Do habitual que é nada e que faz as conversas fluírem. Por nada. Por tudo. Por tanto. E é tanto... Portanto, senta-te a meu lado e abre a janela. Sim, com a janela aberta para sentires o Sol na pele e o Vento na carne. Os elementos e os sentidos juntos e apurados. Aprumados. Simbióticos para que vivam e sobrevivam na mesma dança em que redopia a nossa conversa.

Anda. Vai-me ouvindo. Sabes como fazê-lo. É como eu gosto. Como sabe bem. Como me sinto bem. Consigo fazê-lo sem te ter aqui. As mesmas conversas. Os mesmos risos. Até as mesmas perguntas. Isto porque... as respostas serão as mesmas.

Anda. Hoje, escolhi-te a ti para dançar.

12 de março de 2010

Hoje uma coisa simples...


Hoje uma coisa simples...

Eu, partículas, vagueio por aí, dispersa, desperta.
Eu, partículas, divido-me e subtraio-me para ser tudo e todo.
Para ser nada.
E no nada abranger a totalidade e tudo ser
E no nada abranger a totalidade e tudo ter.
Por tudo querer.
Nada perder.
De mim…

4 de março de 2010

O mais perto de São Pedro a que consigo chegar

Em cima do escadote. No último degrau, como o Principezinho. Não com a doçura da descoberta, nem com a inocência da procura, mas com a certeza adulta de quem não tem respostas… No último degrau, agarrada ao céu e a fazer equilíbrio por entre os pingos da chuva. Grossa. Persistente. Que insiste em não deixar de cair. Dia após dia. Para que não a esqueçamos. Grossas, as gotas na estratosfera. Frias de gelo antárctico. Galáctico. E é no último degrau que toda Eu sou elas e elas nada de mim têm ou guardam ou são… Toda Eu, aqui. Frio. Gelado. Aleatório.

Em cima do último degrau. A chuva nada de novo traz. A não ser a certeza da sua existência, a constância de uma temperatura cinzenta e agreste. Tivesse eu uma capa até aos pés como ele, o Príncipe e saberia fazer as perguntas certas, as que não têm resposta. Que são para pensar. Mas não… Comum mortal em cima de um escadote… apenas as perguntas com resposta em que se evita pensar e cujo resultado fonética é desenhado no deserto do pensamento.

Com chuva. Subo os degraus todos, até ao fim, até ao limite, até ao último sem sair do mesmo sítio. O gelo, no topo intensifica-se. Não é neve. Não tem o seu silêncio de penas nem de lã. À chuva. Como ele. Não tenho uma ovelha para falar. Trouxe outros. Os de sempre. Os habituais. Os fáceis. Que ouvem a chuva como eu e sentem o descer da temperatura mesmos sítios. Como agulhas. Sem bisturi desta vez…

No último degrau. Inspiro até ao umbigo. Geodesicamente cheia de nada e deixo que a água escorra e lave e leve. No cimo do escadote estico-me até ao limite do alcançável, como que à beira do precipício para finalmente lhe tocar e, então sim, afastar a nuvem que acinzenta este deambular incerto…

1 de março de 2010

... no pescoço, ao largo, onde se sente o estômago... (cont.)

Na cova assimétrica, onde a métrica direcciona as vontades, onde a fita condiciona os desejos, onde o olhar se perde quando não enfrenta. Na depressão que forma lagoa, mar, oceano de saliva não digerida. Saliva com sal. Saliva com suor. Saliva com conchas que vieram do mar. Saliva quente com asas. Faz voar. Pingos que escorrem com sal. Que se formam no sulco. Depressão carnal. Que se misturam e se trocam e se tocam. Enrolam e descontrolam. Geometria traiçoeira que faz arriscar. Que nos ludibria e faz querer tocar. Ao de leve… Mapa topografado a Braille desenhado. Em frente. De frente. Ao largo… na cova assimétrica para onde escorre o perfume… e o cheiro.

15 de fevereiro de 2010

Lá, onde nos deixamos

Sempre que nos damos, deixamo-nos, lá… Não num todo. Nunca o todo. Partes. Partes de nós que damos, que transitamos para outros e que não reavemos. Partes de nós que se soltam e navegam para outras mãos. Para outros corpos. Para outras cabeças. Nós, que em partes soltas e únicas nos multiplicamos nos afectos que distribuímos. Nos dividimos nas palavras que dizemos. Nos subtraímos nas decisões que adiamos. Ou adimos? Nós…

Lá, onde por vezes nos deixamos, quando nos damos… onde o sangue ferve ou onde a mente vai e voa… Lá, onde sonhamos, onde somos, onde gritamos, onde cantamos, onde somos nada. Mas ficamos… Não num todo. Nunca o todo. Porque as partes, as soltas, dispersas, não voltam. Já não nos pertencem. Pertencem a outros. O pouco que damos e deixamos, de nós. Nós. Aos poucos. Nós. Aos outros. Nós. Dispersos… sempre que nos damos.

10 de fevereiro de 2010

Onde a Lua repousa

Nos sítios recônditos e escondidos. Inacessíveis mas não impossíveis. Onde a Lua repousa, cheia, prenha de vida, de luz cinética, electrizante, na dialéctica de braille pestanejado. Do que não é dito... desejado... No colo da onda, na espuma diluída. Focos de luz. Focos de vida. Estímulos auriculares que se propagam paredes acima. Na cova secreta. Ao virar da esquina. É lá que te espera... o toque...

Sei-Te

Não tens aparecido... senti a tua falta.

Tenho andado ocupada. Muitos pensamentos para tratar. Toneladas de burocracias do foro psicológico em curso que não me têm deixado com tempo para mais nada...

Tu, sem tempo... Tu, que nunca o usaste como desculpa...

...desculpa...

Culpa... é isso? Manipulas as horas e os segundos como quem separa grãos de arroz. Agarras nos ponteiros do relógio e dás-lhes dentadas...

... de prazer...

... com todo o prazer, bem sei!

Horas de decisões por arrumar...

E já estão arquivadas? Separadas cronologicamente e engavetadas nas respectivas prateleiras onde ganharão pó por jamais voltarem a ser mexidas de novo?

Separados por fotogramas. Espetei-as delicadamente com agulhas no quadro de cortiça, não tinha mais nada com que as espetar... a elas... mas acho que ainda sangram...

Deixa-me ver as tuas mãos!

Não as trouxe...

MOSTRA-MAS, se fazes o favor!

Sabes que nunca as trago comigo quando venho ter contigo. Ninguém as lê como Tu e, assim, ficaria sem saber o que contar, o que dizer, o que falar... viria em vão...

Mas trouxeste a cara!

Que diferença é que faz?... a mesma, desde sempre, desde todo o sempre. Já dentro do útero, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo nariz, a mesma expressão...

... mas as mãos...

...diferentes a cada dia que passa... como Tu sabes. Como Tu lês... é com elas que ouso. É com elas que tento. É com elas que me enrolo, me engano, me minto, me traio... e cada traço, cada ruga, cada prega, cada corte são legendas na Tua língua... Que sobra mais de mim?...

Tanto de Ti...

... que escondo, que nego, que recuso a aceitar!

Mas eu sei-Te!

Não me sei Eu... a mim... não tenho tempo para me saber... deitei fora os ponteiros, lembraste?

Dá-me tempo, do Teu! Junta com o Meu, para te mostrar. Tu, a Ti!

Que há de mim para me mostrar? A minha imagem, de espelho, do avesso... a outra...

TU!

Não...

SIM!

Não mais...

A outra...

...Eu...

Que eu conheço!

...como Eu...

És Tu em Mim, como sempre Te soube!

Eu...

... em mim...

... enrolada no meu novelo de corda à espera que me embalem...

...como SEMPRE SONHEI!!!

8 de fevereiro de 2010


Dança das sombras Indonésias

Como se fugida do nosso pensamento, a sombra. A tinta-da-china rendilhada à nossa volta, numa dança hindu, picotada a pincel de crina, do mais puro sangue lusitano. Cópia abstracta do original, que delimita o contorno visível e destapado do que é permitido ver. Que a contra luz finge reproduzir, num esboço primário e superficial, como o são as impressões. Digital sem tocar, porque foge. A sombra. À nossa volta. Mais rápida que o movimento, que acompanha. Mais rápida que o pensamento, que precede. Mais rápida que a vontade, que já lá está. Num ritual de vestes birmanesas, ao contrário do seu colorido de patchwork, o antónimo, a preto e branco, escuro, como o indecifrável. Como o irreproduzível. As sombras. No seu território contornam os limites e as margens e as barreiras e assombram e assolam e assassinam a sensibilidade de quem apenas vê o que a sobriedade da razão permite, como numa dança de sombras Indonésias: o que não lá está. Eu estive... lá.

5 de fevereiro de 2010

Lá, onde ficaram as palavras

Tem que ser de olhos fechados. Sempre de olhos fechados. Semi-cerrados? Semi-encerrados? Encerados a mar... Abandonados. Olhos colados do avesso ao córtex, a nadar por entre os seios. Todos. Enrolados em hemisférios. Mistérios. Só assim se nota a assimetria. Sem mestria de não ver...o espelho, pelo outro lado... Fechados. Bem fechados.

A inspiração. Profunda... de novo... cheia. Ampla. Esgotante. Limitante na colagem das margens que não expandem mais do que a víscera que as prende. Ausente. Cola que descola com saliva e suor. Viva na latência do amanhã. O melhor... submerso...

O abandono. Total. Desmembramento. Desdobramento sobre si. Por si. Para si. O acabamento perfeito resultante de cada pedaço arrancado à dentada. Como um cão raivoso. A raiva. Que uiva à medida que a pele deixa de o ser. À medida que o odor desaparece. À medida que os líquidos escorrem pela terra. Se entranham. Sem entranhas. Digeridas pela bílis fermentada. Moldada. E o que sobra... Levita. Flutua. Paira. Voa sem asas num paralelo etéreo e inatingível. Transversalmente, ali ao lado... com os olhos bem fechados e o peito cheio... de voar... basta esticares a mão e arrancares as palavras que ficaram coladas na parede...

27 de janeiro de 2010

19 de janeiro de 2010

Palavras que jorram dos pulsos

Corta-me os pulsos. Não um risco cirúrgico qualquer a bisturi ou faca da cozinha. Vai buscar o machado, a serra eléctrica e corta-os totalmente, arranca-os à dentada, tira-os do sitio como se fosse um filme do Tarantino! Faz como ele. Deixa-me gesticular sem mais, ferozmente. Fazer o sangue jorrar de encontre as paredes brancas e estéreis. Rendilhadas de vermelho quente penetrante. Agarra-me pelos braços para que fiques manchado de sangue também enquanto tento fugir-te. Sente a queimar cada gota na tua pele, na tua cara, que é a minha e arde… Assim, velozmente, litro a seguir a litro, a cor muda. Despejo líquidos de pensamentos e palavras que passam de rosado intenso para branco pálido. Do querer para a intenção. Do sentir para a ilusão. Vê como as gotas incandescentes te acordam da letargia e te fazem renascer. Choques eléctricos de enguias fora do oceano. Mar é agora o chão que pisamos, não tarda nadamos como peixes fora de água. Sem sal. Apenas ferro intenso. Branco imenso sou eu sem ti nem sangue. Fica escrito nas paredes as palavras que jorraram dos pulsos e calaram da boca.
Quantos sentidos temos? Que sentidos usamos? Para que sentido nos perdemos? Com que sentido nos tememos? Desnorteados connosco mesmos entre o fazer e não fazer. Entre o fugir e não fugir. Entre o decidir e o nunca decidir.
Nunca a dúvida fora tão acentuada. Tão acertada… encostada ao ferro ferrugento do elevador. A ferrugem forte e ocre. Dispersa verticalmente pelo prédio acima. Ao sabor do vento e das correntes. O ferro do elevador. A ferrugem do tempo.A cor do contratempo. Passado e encontrado no mesmo sítio. O cheiro. Sempre o mesmo cheiro. Não das escadas. Esse, já estava nas entranhas e lá permanecia dormente. Latente era o cheiro da ferrugem entranhado nas lágrimas que escorriam escada abaixo. Se o barulho, em tempos, fora do crack crack, agora era do ping ping da torneira que se tinha aberto. Os despojos escorriam em sal grosso do saco cheio. Lacrimal de medo e dúvida. De ressentimento e hábito. Do hábito… normal. As partículas desmaterializadas e vaporizadas ecoavam pelo patamar. Gritavam. Gemiam. Articulavam palavras que não podiam ser ditas de verdade que possuíam. A leitura do Tarôt abdicara das cartas em prol da profecia do auto-conhecimento: os búzios estavam lançados. Desciam cada degrau manchado de sal com a certeza que só a dúvida tem…

11 de janeiro de 2010

Dança comigo, sim?

A dança era de iniciação. De puro acasalamento. Colados pelo pescoço, lá por trás. Pela nuca. Eunuca de vontade porque a dança, a verdadeira, era inata e genética. Impossível de resistir ou escapar. Ecléctica. Mas poética de palavras não ditas. De adjectivos silabados. Comedidos. Desesperados. E tão, mas tão sentidos… Era também de sedução. A dança, como uma canção. Ritmada como uma melodia que não sai do olfacto. Tatuada aos ouvidos como uma perpétua récita em Dó Menor. Dança comigo, sim? De mão na cintura, como num tango. Rosa vermelha na boca, ao canto. Porque a dança é de satisfação! De emoção: pura devoção. A outra, a mão, no pescoço, aberta como a verdade, sem piedade do que de lá sai. Da boca. Vermelha como a rosa. De contenção. Afiada como os picos. Acomodação…

O enlear dos corpos dá-se na testa com a festa na ponta dos dedos. Quilómetros de pensamentos dedilhados em uníssono. Trilhos de palavras a médio grau tremidos. Impressões digitais não detectáveis na pauta tocada a piano e saxofone. Branco e preto. Quente e frio. Perto e longe. Como uma dança. Como o tango. De mão na cintura e no pescoço. E no corpo todo…