27 de agosto de 2010

Beija-me agora


25 de agosto de 2010

A arte do agora

A cozinha não era muito grande. Quadrada mas não muito grande. Uma natureza morta presa no século passado. Uma casa Queiroseana transladada para uma cozinha do agora. Cortinados pesados e escuros. Papel de parede grosso, de flores secas e sem cor. Tamanho grande, ao contrário da cozinha. Até um candeeiro-candelabro. Cristal da Bohémia em gotas por cima da cabeça. Luz cintilante e redopiadora colada às quatro paredes. Como um céu. A mesa do chá, de três pés, de bola de cristal e cartas e búzios a um canto. O napron branco imaculado por cima. Orificios de renda meticulosamente trabalhados.

...meticulosamente...

A arte culinária estava decidida há muito. Era pouco mas há muito. O barulho dos tachos e panelas vindos do fogão, ao lado do candeeiro de pé alto, era praticamente surdo. O vapor apenas envolvia a cozinha com o calor. A temperatura que aumentava a par com os minutos. O relógio de parede. Mogno antigo e imponente com um traço de humidade. Marcava treze horas e sete minutos. O marcapasso era rígido e cirúrgico.

... cirurgicamente...

A mesa estava posta. Toalha de linho a fazer conjunto com o napron. À mão. Assim trabalhados. Os pratos gastos pelo uso apenas deixavam prever a sua idade através das ranhuras quase rasuradas dos bordos. Talheres de prata de família, reluzentes de nunca terem sido usados. A faca de cabo de crocodilo vinda de África, do interior negro e denso da selva africana. O umbigo retorcia-se só de a ver. Acutilante.

... acutilantemente...

Treze e vinte e oito. O barulho dos carros e das pessoas e dos animais e das lojas e do mundo e da vida e do vento e do fogo em nada pertenciam a este cenário controlado e previsível. O vapor já não vinha do fogão. A temperatura vinha do prato e do corpo e da respiração. Batatas sem casca, novas. Ovo cozido partido em quatro, amarelo e branco de caseiro. Brócolos verde intenso que apenas condiziam com a cor vermelha ardente da mão que estava dentro do prato. Vermelho sangue vivo. Novo. Do momento.

... Silenciosamente e com a mesma calma com que preencheu o prato de amarelo batata, de branco ovo e de verde brócolos, a faca crocodilo oscilava suavemente para jusante e montante. Ao nível do punho começava a surgir um rio eritrocitário de vermelho intenso. Meticulosamente, foi cortando a pele a carne o músculo as veias as artérias os tendões os nervos até chegar ao osso. Cirurgicamente, mais nervos tendões artérias veias músculos carne e pele. Acutilantemente. Recostou-se na cadeira. Era arte. Arte conduzida pela sua vontade sem dor. Deixou-se ficar a sorrir para o prato antigo com condimentos do agora. Apenas uma gota vermelha na toalha branca imaculada que fazia conjunto com o napron. À mão. A mão. Trabalhada. O resto do vermelho, pintava o chão e deixava-se levar pela corrente casa fora. Como um rio em direcção ao mar.

1 de agosto de 2010

Voltei

... subiu os dois últimos degraus praticamente sem fôlego e meteu a mão no bolso. Agaixou-se com o suor a pingar da testa, com o sal a misturar-se com a saliva, com o rimel com a água e encontrou. No exacto sítio onde as tinha deixado. Afinal, de todas as vezes que lá tinha regressado, em nenhuma delas precisou de lhes mexer. As chaves continuavam lá. Exactamente. E muitas vezes havia regressado. À sua procura. Não de outros. De si.

Fechou a porta segura. Segura de vontade. Segura que quando voltasse, tudo estaria na mesma: de cabeça para o ar. "Até já".

Abriu a porta. Entre o medo, a certeza e o meio. A chave escorregou-lhe da mão e desapareceu. Entre o suor, os tremores e a relutância, ao centro, entrou. O cheiro era o mesmo. Sempre o cheiro a marca territorial que hierarquiza a cronologia das histórias. Um misto de cheiro de hotel, asséptico, com perfume de homem, forte. Podia ter entrado de olhos fechados que não haveria dúvidas... novas... Sentia a distância das paredes equidistantes e imutáveis. Betume transparente com janelas sem vidros. Vitreo para fora. Opaco por dentro. Deu dois passos. Resolveu não abrir os olhos. Entre o jogo, o prazer e a certeza, à direita, desviou-se do candeeiro de tecto que ainda estava apagado. Eram dois. Esquerda e direita. Num equilíbrio siamês de art nouveau. Entre o habitual, o estranho e o picante, à esquerda, o sofá. O mesmo. Vermelho fogo e moldado. Não tão acessível, permanecia com as almofadas de urtiga no canto da sala, em cima, por cima, da cabeça. Ao lado da mesa, onde por baixo, em cima, estavam escritos os pensamentos. Os que tinham ido. No chão, ao canto, do tecto, um aranhuço trabalhava na teia intrincada que era a sua vida. A chave estava lá, lá dentro. Bastaria uma vassoura para lá chegar. Para varrer todo um mundo que tinha ficado de pernas para o ar à saída, mas cujo tempo e distância conservaram até... à entrada.

"Voltei!".