1 de agosto de 2010

Voltei

... subiu os dois últimos degraus praticamente sem fôlego e meteu a mão no bolso. Agaixou-se com o suor a pingar da testa, com o sal a misturar-se com a saliva, com o rimel com a água e encontrou. No exacto sítio onde as tinha deixado. Afinal, de todas as vezes que lá tinha regressado, em nenhuma delas precisou de lhes mexer. As chaves continuavam lá. Exactamente. E muitas vezes havia regressado. À sua procura. Não de outros. De si.

Fechou a porta segura. Segura de vontade. Segura que quando voltasse, tudo estaria na mesma: de cabeça para o ar. "Até já".

Abriu a porta. Entre o medo, a certeza e o meio. A chave escorregou-lhe da mão e desapareceu. Entre o suor, os tremores e a relutância, ao centro, entrou. O cheiro era o mesmo. Sempre o cheiro a marca territorial que hierarquiza a cronologia das histórias. Um misto de cheiro de hotel, asséptico, com perfume de homem, forte. Podia ter entrado de olhos fechados que não haveria dúvidas... novas... Sentia a distância das paredes equidistantes e imutáveis. Betume transparente com janelas sem vidros. Vitreo para fora. Opaco por dentro. Deu dois passos. Resolveu não abrir os olhos. Entre o jogo, o prazer e a certeza, à direita, desviou-se do candeeiro de tecto que ainda estava apagado. Eram dois. Esquerda e direita. Num equilíbrio siamês de art nouveau. Entre o habitual, o estranho e o picante, à esquerda, o sofá. O mesmo. Vermelho fogo e moldado. Não tão acessível, permanecia com as almofadas de urtiga no canto da sala, em cima, por cima, da cabeça. Ao lado da mesa, onde por baixo, em cima, estavam escritos os pensamentos. Os que tinham ido. No chão, ao canto, do tecto, um aranhuço trabalhava na teia intrincada que era a sua vida. A chave estava lá, lá dentro. Bastaria uma vassoura para lá chegar. Para varrer todo um mundo que tinha ficado de pernas para o ar à saída, mas cujo tempo e distância conservaram até... à entrada.

"Voltei!".

8 comentários:

I disse...

Fiquei sem folego! O arquetipo das chaves... o cheiro que nos marca as historias cronologicamente... quero entrar neste texto e fechar-me a chave!...

CarMG disse...

O cheiro, tal como o sabor, levam-nos a viajar no tempo e nas recordações. Ficam tatuados na nossa memória.
Guardados à chave ;)

I disse...

Sim e isso mesmo quando pensamos ter perdido as chaves ou já nem nos lembrávamos... um odor, um aroma e eis que nos deixamos levar numa onda mais forte...

Lina disse...

Os intrincados regressos e todas as suas metamorfoseadas perguntas.

CarMG disse...

I,

não teria escolhido melhores palavras do que as tuas... quando pensamos que determinas chaves estão guardadas o perdidas ou... longe... numa inspiração voltam ao nosso bolso.. e lá vem a onda outra vez...

CarMG disse...

Lina,

Metamorfoseadas ou... encobertas? inexistentes... evitáveis... ignoradas... and so on and so on...

Mas... não há nada como voltar!

Anónimo disse...

Também já tinha saudades. Voltei muitas vezes à tua procura e agora...encontrei-te. EM

CarMG disse...

:) obrigada :)