16 de abril de 2010

Porque hiperbolizam sempre.... de noite

Cheira de novo a terra molhada. Aquele cheiro das primeiras chuvas. Intenso. Denso. Envolvente. Daquelas que já sentimos saudades de não chover há tanto, tanto tempo. Em tempos. De noite cheira mais, não te parece? É a hiperbolização nocturna. A exponenciação dos cheiros. Dos vultos. Das sombras. Dos desejos. Dos medos... Tudo à noite se escreve com letra maiúscula. Noite, palavra esdrúxula que tudo abrange. Pelo que cobre. Que tudo empardece. Pelo que esconde. Onde? Nas esquinas. Nos cantos. Nos recantos. Nos sonhos e encantos. Nos lençóis... Por dentro. E lá fora? Embora escuro, clareia. É a luz do silêncio. A clarividência do sossego. Paz e pausa................................................................................................................................................................... Ouve. Ouve a noite à tua volta. Silenciosa e viva. Ouve....................................................................... Vê como te está próxima. Aproxima-te. Sente..................................................................... Sente a noite. Ouve o bater do coração. A pulsatividade do negrume e das luzes. Pirilampos. São como pirilampos. Cheira a chuva ritmada. A terra molhada. Deixa-a escorrer.............................................................
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. . . . . . . . . . . . . . porque a noite cheira a ti.

15 de abril de 2010

"A stranger in me"

Nunca conhecemos verdadeiramente ninguém, pois não? Em modo afirmativo e não retórico: nunca conhecemos verdadeiramente ninguém. O próprio ninguém pressupõe o nada e do nada, nada se conhece. Muito menos do alguém que, transformado em ninguém se camufla no agente passivo, no elemento que cruz e passa. Invisível. Irreconhecível. O nada que de nós sabemos. Que dos outros pensamos. Que de nós idealizamos. E dos restantes... imaginamos. O conhecimento do que queremos. Ninguém. Alguém. Nós. Todos e nenhuns. Encaixados na mesma roldana. No mesmo movimento circular e industrial. Universal de tão indigente. Mãos com pés. Cabeça com pernas. Corpo... ao ar. Um uníssono. Transfunde a pele e a cor. Hemodialisa o ser. Depura o Eu e o Tu. Sobra o Ele e Ela. Os Os e as As emoldurados num tríptico social. Visual. Informal. Rega a tela com água e resta o esqueleto. Está lá o pano. Não é engano. É visível. Perecível. Enfia a cabeça na fotocopiadora e distribui as cópias. Umas com bigode. Outras com baton. Passa... as mãos nos pés. Na cabeça. Nas pernas. Passa-as. Passa-te. Invisível. Irreconhecível.

7 de abril de 2010

Deglutição

A inevitabilidade do poder do íman. A atracção sem limites das forças, opostas, que se atraem, que se traem e complementam. Que se aumentam. E colidem, numa simbiose longe de ser perfeita, rarefeita, como o ar suado que sobra desta deglutição. É o que os vícios fazem: deglutem. Deglutem sem degustar as carnes fracas, as partes intactas que sobejam aos molhes. Servido em bandejas de prata, com fita vermelha, como nas dependências das casas senhoriais. As forças sem atrito dos gumes que roçam na carne. Cotovelos gastos e ruçus de ajoelhar. Hábitos e vestes. Virtudes e despes. Porque, opostas, as forças ganham. As vontades falham. E os vícios, sustentáveis e inevitáveis... garantem sempre o seu lugar.

6 de abril de 2010

O cheiro do toque com o olhar

Pausa. Play-play. A double click. Assim mesmo. Hoje, é assim que vai ser. Um play dividido pela metade. Imagens a 256 bits a escorregar pela tela que é a minha vista. Quero tempo para ver tudo com atenção. Quero tempo para observar o mundo. Devoção. Em vez de o ver correr à minha frente... Este arrepio que me percorre as costas por não poder agarrar o que não se vê. O que não é palpável. Apenas imaginável. Quero tempo! Quero ver! Quero absorver as pessoas. Hoje, não quero conclusões. Quero apenas factos. Observar os actos. A metade da velocidade. Analisar como se mexem. Como andam. Acima de tudo, como olham. Para onde olham. E como tocam, com o olhar.

O toque com o olhar é diferente. Indigente. Toco sem ver, para sentir. O toque com o olhar é para confirmar. É para enganar, quem se toca, que não se quer tocar.

Rewind... toco de novo para eu ver. Os pelos de quem toca e se sentem nos dedos de quem é tocado. Vi o sorriso atravessar o olhar do toque. E, sem se aperceber, cheira o toque, para confirmar: existiu.

Pause.

Consigo ficar assim, de fora, a imaginar as sensações e emoções e diversões. Só pelo prazer de observar o jogo. De fora. Com num filme. Como numa tela. Mas mesmo aqui ao lado. Aqui dentro. Tão perto...

Stop.
"Então, fechei os olhos com força e fixei-me no que via. Esta era uma das coisas que fazia desde pequeno, que tinha descoberto por acaso e que imaginava ser eu a única pessoa a fazer no mundo. Fechava os olhos e via. Via o que se vê com os olhos fechados. Via o negro dentro de mim e via os pontos de luz que o quebram, as vagas de luz, as figuras abstractas de luz, os vultos de luz, as sombras de luz dentro da luz do negro dentro de mim. Isto é o que se vê quando fechamos os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que o habitam."
...
José Luís Peixoto
in
Uma Casa na Escuridão, pg. 20

5 de abril de 2010

Enquanto alternas entre uma perna e outra

Há quanto tempo é que estás aí a espreitar? Não te vi. Nem sequer te ouvi. Essa mania de olhares sem falar. Pestanejos e saliva nos lábios. Em câmara quase lenta. Apenas isso. Há quantas horas estás aí? Estás inodoro. O teu cheiro denuncia-te sempre. Os cheiros denunciam tudo. As horas. Os sítios. As vontades. As histórias nascem daí. Dos cheiros. E das vontades. Que vontade de ser transparente. Da mesma maneira que és inodoro. Passar invisível mas continuar a ser. Não ser vista mas existir. Na memória? Não… insuficiente. Existir.

Falavam-me em pessoas que saiam dos seus quadros e continuavam a ser até se diluírem. A imagem não me saiu da ideia. Mudar apenas de quadro. Conseguirias continuar a observar? Por vezes só se observam as pessoas nos quadros em que moram. Nos outros, os emprestados. Ocupados. Perdem a capacidade. De existir. De observar. As pessoas. Não te vais fartar, pois não? Vais… Vais deixar de ter saliva. Vai passar a saber a sal e a gretar-te os lábios. Só com mais saliva é que vai desaparecer. E não é no olhar que elas se juntam. Só com o olhar as gretas são grutas e o sal, ácido. Sulfúrico. Continuar-te-á a corroer. Na memória? Não… existes…