25 de agosto de 2010

A arte do agora

A cozinha não era muito grande. Quadrada mas não muito grande. Uma natureza morta presa no século passado. Uma casa Queiroseana transladada para uma cozinha do agora. Cortinados pesados e escuros. Papel de parede grosso, de flores secas e sem cor. Tamanho grande, ao contrário da cozinha. Até um candeeiro-candelabro. Cristal da Bohémia em gotas por cima da cabeça. Luz cintilante e redopiadora colada às quatro paredes. Como um céu. A mesa do chá, de três pés, de bola de cristal e cartas e búzios a um canto. O napron branco imaculado por cima. Orificios de renda meticulosamente trabalhados.

...meticulosamente...

A arte culinária estava decidida há muito. Era pouco mas há muito. O barulho dos tachos e panelas vindos do fogão, ao lado do candeeiro de pé alto, era praticamente surdo. O vapor apenas envolvia a cozinha com o calor. A temperatura que aumentava a par com os minutos. O relógio de parede. Mogno antigo e imponente com um traço de humidade. Marcava treze horas e sete minutos. O marcapasso era rígido e cirúrgico.

... cirurgicamente...

A mesa estava posta. Toalha de linho a fazer conjunto com o napron. À mão. Assim trabalhados. Os pratos gastos pelo uso apenas deixavam prever a sua idade através das ranhuras quase rasuradas dos bordos. Talheres de prata de família, reluzentes de nunca terem sido usados. A faca de cabo de crocodilo vinda de África, do interior negro e denso da selva africana. O umbigo retorcia-se só de a ver. Acutilante.

... acutilantemente...

Treze e vinte e oito. O barulho dos carros e das pessoas e dos animais e das lojas e do mundo e da vida e do vento e do fogo em nada pertenciam a este cenário controlado e previsível. O vapor já não vinha do fogão. A temperatura vinha do prato e do corpo e da respiração. Batatas sem casca, novas. Ovo cozido partido em quatro, amarelo e branco de caseiro. Brócolos verde intenso que apenas condiziam com a cor vermelha ardente da mão que estava dentro do prato. Vermelho sangue vivo. Novo. Do momento.

... Silenciosamente e com a mesma calma com que preencheu o prato de amarelo batata, de branco ovo e de verde brócolos, a faca crocodilo oscilava suavemente para jusante e montante. Ao nível do punho começava a surgir um rio eritrocitário de vermelho intenso. Meticulosamente, foi cortando a pele a carne o músculo as veias as artérias os tendões os nervos até chegar ao osso. Cirurgicamente, mais nervos tendões artérias veias músculos carne e pele. Acutilantemente. Recostou-se na cadeira. Era arte. Arte conduzida pela sua vontade sem dor. Deixou-se ficar a sorrir para o prato antigo com condimentos do agora. Apenas uma gota vermelha na toalha branca imaculada que fazia conjunto com o napron. À mão. A mão. Trabalhada. O resto do vermelho, pintava o chão e deixava-se levar pela corrente casa fora. Como um rio em direcção ao mar.

7 comentários:

Lina disse...

Negro e claustrofóbico mas com a sua perfeita redenção numa única gota de sangue.

I disse...

Arrepiante e fantástico! Desconfio sempre da perfeição meticulosa...

Luís B. disse...

Este poderá ser 1 comentário estúpido, mas lendo este texto lembrei-me de... Hannibal Lecter! Desculpa... Mas adorei!

CarMG disse...

Claustrofóbico? Não o tinha imaginado assim... mas agora que falas nisso, podia ter insistido mais nessa característica da cozinha!!!

Quem se preocupa em demasia com a perfeição meticulosa, é porque decerto não tem mais nada com que se preocupar ou então... não consegue mesmo pensar noutra coisa... e aí vem a obcessão! Fascinante qualquer obcessão :)

Sim, cirurgico como Hannibal Lecter! Obrigada Luís :)

CarMG disse...

Claustrofóbico? Não o tinha imaginado assim... mas agora que falas nisso, podia ter insistido mais nessa característica da cozinha!!!

Quem se preocupa em demasia com a perfeição meticulosa, é porque decerto não tem mais nada com que se preocupar ou então... não consegue mesmo pensar noutra coisa... e aí vem a obcessão! Fascinante qualquer obcessão :)

Sim, cirurgico como Hannibal Lecter! Obrigada Luís :)

Blogadinha disse...

Uma gota de mau presságio para Queirós, vida tanta para os demais.

Fantástica cadência e visão!

... simplesmente. :))

CarMG disse...

Sim, vida tanta para muitos, para demais!

Obrigada :)