15 de fevereiro de 2010

Lá, onde nos deixamos

Sempre que nos damos, deixamo-nos, lá… Não num todo. Nunca o todo. Partes. Partes de nós que damos, que transitamos para outros e que não reavemos. Partes de nós que se soltam e navegam para outras mãos. Para outros corpos. Para outras cabeças. Nós, que em partes soltas e únicas nos multiplicamos nos afectos que distribuímos. Nos dividimos nas palavras que dizemos. Nos subtraímos nas decisões que adiamos. Ou adimos? Nós…

Lá, onde por vezes nos deixamos, quando nos damos… onde o sangue ferve ou onde a mente vai e voa… Lá, onde sonhamos, onde somos, onde gritamos, onde cantamos, onde somos nada. Mas ficamos… Não num todo. Nunca o todo. Porque as partes, as soltas, dispersas, não voltam. Já não nos pertencem. Pertencem a outros. O pouco que damos e deixamos, de nós. Nós. Aos poucos. Nós. Aos outros. Nós. Dispersos… sempre que nos damos.

10 de fevereiro de 2010

Onde a Lua repousa

Nos sítios recônditos e escondidos. Inacessíveis mas não impossíveis. Onde a Lua repousa, cheia, prenha de vida, de luz cinética, electrizante, na dialéctica de braille pestanejado. Do que não é dito... desejado... No colo da onda, na espuma diluída. Focos de luz. Focos de vida. Estímulos auriculares que se propagam paredes acima. Na cova secreta. Ao virar da esquina. É lá que te espera... o toque...

Sei-Te

Não tens aparecido... senti a tua falta.

Tenho andado ocupada. Muitos pensamentos para tratar. Toneladas de burocracias do foro psicológico em curso que não me têm deixado com tempo para mais nada...

Tu, sem tempo... Tu, que nunca o usaste como desculpa...

...desculpa...

Culpa... é isso? Manipulas as horas e os segundos como quem separa grãos de arroz. Agarras nos ponteiros do relógio e dás-lhes dentadas...

... de prazer...

... com todo o prazer, bem sei!

Horas de decisões por arrumar...

E já estão arquivadas? Separadas cronologicamente e engavetadas nas respectivas prateleiras onde ganharão pó por jamais voltarem a ser mexidas de novo?

Separados por fotogramas. Espetei-as delicadamente com agulhas no quadro de cortiça, não tinha mais nada com que as espetar... a elas... mas acho que ainda sangram...

Deixa-me ver as tuas mãos!

Não as trouxe...

MOSTRA-MAS, se fazes o favor!

Sabes que nunca as trago comigo quando venho ter contigo. Ninguém as lê como Tu e, assim, ficaria sem saber o que contar, o que dizer, o que falar... viria em vão...

Mas trouxeste a cara!

Que diferença é que faz?... a mesma, desde sempre, desde todo o sempre. Já dentro do útero, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo nariz, a mesma expressão...

... mas as mãos...

...diferentes a cada dia que passa... como Tu sabes. Como Tu lês... é com elas que ouso. É com elas que tento. É com elas que me enrolo, me engano, me minto, me traio... e cada traço, cada ruga, cada prega, cada corte são legendas na Tua língua... Que sobra mais de mim?...

Tanto de Ti...

... que escondo, que nego, que recuso a aceitar!

Mas eu sei-Te!

Não me sei Eu... a mim... não tenho tempo para me saber... deitei fora os ponteiros, lembraste?

Dá-me tempo, do Teu! Junta com o Meu, para te mostrar. Tu, a Ti!

Que há de mim para me mostrar? A minha imagem, de espelho, do avesso... a outra...

TU!

Não...

SIM!

Não mais...

A outra...

...Eu...

Que eu conheço!

...como Eu...

És Tu em Mim, como sempre Te soube!

Eu...

... em mim...

... enrolada no meu novelo de corda à espera que me embalem...

...como SEMPRE SONHEI!!!

8 de fevereiro de 2010


Dança das sombras Indonésias

Como se fugida do nosso pensamento, a sombra. A tinta-da-china rendilhada à nossa volta, numa dança hindu, picotada a pincel de crina, do mais puro sangue lusitano. Cópia abstracta do original, que delimita o contorno visível e destapado do que é permitido ver. Que a contra luz finge reproduzir, num esboço primário e superficial, como o são as impressões. Digital sem tocar, porque foge. A sombra. À nossa volta. Mais rápida que o movimento, que acompanha. Mais rápida que o pensamento, que precede. Mais rápida que a vontade, que já lá está. Num ritual de vestes birmanesas, ao contrário do seu colorido de patchwork, o antónimo, a preto e branco, escuro, como o indecifrável. Como o irreproduzível. As sombras. No seu território contornam os limites e as margens e as barreiras e assombram e assolam e assassinam a sensibilidade de quem apenas vê o que a sobriedade da razão permite, como numa dança de sombras Indonésias: o que não lá está. Eu estive... lá.

5 de fevereiro de 2010

Lá, onde ficaram as palavras

Tem que ser de olhos fechados. Sempre de olhos fechados. Semi-cerrados? Semi-encerrados? Encerados a mar... Abandonados. Olhos colados do avesso ao córtex, a nadar por entre os seios. Todos. Enrolados em hemisférios. Mistérios. Só assim se nota a assimetria. Sem mestria de não ver...o espelho, pelo outro lado... Fechados. Bem fechados.

A inspiração. Profunda... de novo... cheia. Ampla. Esgotante. Limitante na colagem das margens que não expandem mais do que a víscera que as prende. Ausente. Cola que descola com saliva e suor. Viva na latência do amanhã. O melhor... submerso...

O abandono. Total. Desmembramento. Desdobramento sobre si. Por si. Para si. O acabamento perfeito resultante de cada pedaço arrancado à dentada. Como um cão raivoso. A raiva. Que uiva à medida que a pele deixa de o ser. À medida que o odor desaparece. À medida que os líquidos escorrem pela terra. Se entranham. Sem entranhas. Digeridas pela bílis fermentada. Moldada. E o que sobra... Levita. Flutua. Paira. Voa sem asas num paralelo etéreo e inatingível. Transversalmente, ali ao lado... com os olhos bem fechados e o peito cheio... de voar... basta esticares a mão e arrancares as palavras que ficaram coladas na parede...