31 de dezembro de 2009

O Rapto da Europa

Ainda acordada, é certo. E normal… mas como estar a dormir quando um ano inteiro nos está a escorregar pelas mãos sem que nada possamos fazer? Estico-as, a elas, às mãos, para agarrar o tempo que voa e escorre por um muro invisível de titânio. Não sei se o agarro, a ele, ao tempo… se derrubo o muro… As mãos são duas. Os pés, outro par. No total, insuficientes para decidir a vontade e direccionar a acção estática e latente que, adormecida, olha de soslaio para o querer indeciso.

Mas o tempo não pára! Chamei-o por mais de uma vez. Gritei-lhe que não fugisse. Um ano inteiro com tanto para contar e desaparece, assim, à minha frente, por detrás de um sem par de números em nada aleatórios. Vejo os minutos a passar no relógio e assusto-me ao saber que não mais os irei ver… um ano inteiro decorrido… quantas e quantas historias? Quantas e quantas… coisas por contar? Quantas… por decidir? Mais ainda…

A etapa é irreal. O limite psicológico. A barreira… fisiológica… com tão pouca lógica… A soma, o total transbordam borda fora. Juntam-se ao mar, aos oceanos, às galáxias e ao vento e navegam numa memória que turva a água com tempo. Porque nem ela fica. Esbatesse a Carand’ache húmido num papel usado. Uso a mão para guardar o que Rubens ousou raptar. Uso o poder de opção para adiar… mais ainda.

28 de dezembro de 2009

as if...

como se ondulasse num baloiço ao sabor do vento e das marés. baloiço de fio grande, de prumo, pendurado sob um tecto de nuvens que se movem, tal como ele, ao sabor do vento mas ao invés. instável e inconstante como um louco, que vive no limiar da realidade, que diz o que os silêncios calam e que não se esconde nos limites do dito e não dito. louco como o vento que brame e zurra, que não tem consciência nem pesos nem e ses. e se o vento soprar de feição? e se a inconsciência meteorológica cair que nem chuva torrencial, como hoje? e se os trovões e relâmpagos em nada clareassem a mente, mas mente... à luz da clarividência não assumida. mas a luz não brilha assim... como se o baloiço, louco de velocidade, louco de verdade assomasse à porta, descesse as escadas e fosse, simplesmente fosse. louco de vontade. louco de liberdade. e o vento e a brisa e os mares, como se. e se. as if... na incondicionalidade do sentir. na inconstância do querer. no inconformismo do decidir.

24 de dezembro de 2009

A importância de se saber viajar!
De se permitir a si mesmo experimentar o Mundo, descobrir a Vida para lá da vida que se conhece.
A inconstância como antagonista da (a)comodação tão (in)cómoda.
Veículos facilitadores da auto-percepção da (in)finitude dos limites, intrinsecamente ligados aos desejos, às vontades.
Quantas camadas temos, cada um de nós, na nossa mala de viagens?

23 de dezembro de 2009

É na ausência da inexistência do pensar que o gelo começa

É na ponta do pé que o gelo começa. No pé direito. No dedo grande, não no pequeno, demasiado insignificante. Demasiado insensível. Dedo grande, gordo, direccional. Para cima. É para onde o gelo corre. Trepa. Em subida ascendente para o centro anómalo. Sobe que nem formigas carnívoras e devoradoras. Das vermelhas. Grandes como o dedo. Frias de sangue digerido. Como o medo. Trepam cada vaso, cada músculo, cada tendão, cada ligamento e ligam as extremidades distintas numa homogénese gelada. Congelada. Com nada a não ser a insensibilidade do frio…

É no peito que o gelo se instala. É no gelo que o peito se cala, submerso na profundidade da consciência. Ou na ausência da existência do pensar… picador de gelo, como no filme. Martelo pneumático que não quebra a pedra feita lava nem lava as lágrimas que escorrem, quentes, para afastar o frio. Pedra fria e consistente que na dureza da frieza sente e mente. Pela ausência, de novo. Pela consciência, de velha. Pela inexistência, de si mesma …

22 de dezembro de 2009

Foi ontem, o de Inverno

Chamar-lhe ficção e transformá-lo em algo pessoal e transmissível, com a segurança da incerteza da leitura alheia.

Maçã e Canela - O Livro

Os sonhos encontram-se mais distantes quanto menos lutarmos por eles!

A minha amiga Catarina sonhou com um livro e não é que ele nasceu?


19 de dezembro de 2009

Nu

Quero-te nu. Sim, nu. Nu! Tal como vieste ao mundo. Nu. Tal como sempre te imaginei: nu. Deixa a camisa, o cinto, o relógio, os boxers, as calças, as meias, o casaco. Deixa tudo e despe-te. Descobre-te como na forma primordial. Nu. Para eu te descobrir, o tal. Fica a roupa na pele, mas sai o cheiro. Esfrega-o com limão para ficar neutro. Empurra-o com a mão para que evapore. Bebe-o para que não se perca e se transforme. Nu de histórias e contos, pespontos mal alinhavados, desalinhados que nas pontas ficaram soltos. Nu de querer e sentir. No fundo, de fugir. Nu de vícios e virtudes, das vicissitudes e amarguras. Das agruras e da vida. Desnuda-te e fica estéril. Sem cor. Dor. Ou odor. Asséptico de hermético. Azul do sabão. Limpo de exaustão. E assim, sem nada saber, querer ou contar, recomeça. Do vácuo. De frente, para que te veja, porque te quero ler.

Intuição

(tu-i), s. f. conhecimento directo e imediato sem recurso a raciocínio; percepção clara e pronta; primeira vista; pressentimento; visão beatífica; -empírica: a que tem por objecto factos da experiência externa (-sensível) ou interna (- psicológica); - racional: a que tem por objecto relações (de semelhança, da causalidade, axiomáticas, etc..); - metafísica: a que tem por objecto os seres, quer na sua existência, quer na sua essência (o Eu próprio, Deus); -inventiva, divinatória, ou prospectiva: a que nos faz pressentir a verdade. (Lat. intuitione).

15 de dezembro de 2009

Finas e cruéis da vingança gelada e sádica

Quantas vezes tinha passado por eles sem os olham. Sem, sequer, fazer um esgar. Uma mirada. Um olhar de soslaio. A alta velocidade. Em excesso de potência. Do ver. Do esquecer. Quantas vezes tinha decidido que não iria mais passar por aquele mesmo sítio. O que havia a provar em todas as vezes? Em todos os dias a que se sujeitava à mesma provação? À mesma privação. À mesma emoção… Na mão, era onde os imaginava… da imaginação, era donde não saiam… As memórias marcadas a cicatriz pelo corpo abriam-se como um fogo constante e acutilante. Os bordos, nunca totalmente unidos, afastavam-se com o ardor. O calor… insuportável no pico do Inverno. Angustiante no clímax do Verão.

De braços e pernas atados. A força da defesa e da fuga. Em vão. O pânico do que se sabia. Do que se seguia. E a ausência. Off…

Bonecos de cristal. De todas as formas. De todos os tamanhos. De todos os feitios. Mas sempre de cristal. Azul-transparente. Azul-brilhante- Azul-penetrante. As formas arredondadas, finamente trabalhadas, milimetricamente sentidas a cada centímetro de área corporal. Mutilada. De forma laboral. Artesanal. A peculiaridade dos detalhes. A arte. A dor. As arestas. Os picos. Os arabescos. Os rendilhados. Perfeitamente colmatados.

Na mão, era onde os imaginava. Um a um. Um por um. Sem restar nenhum. Na mão. Esmigalhados. Esborrachados. Espezinhados. Crucificados. Mastigados. O sangue escorria a gotas seguidas e constantes. O quente catársico da viscosidade vermelha escura pelo corpo abaixo. Pelo corpo de baixo. O manto eritrócitario que cobria o corpo que restava, agora sem nada para atar. Agora sem nada para mutilar. Mutilado estava. Em fatias. Finas e cruéis da vingança gelada e sádica. O sangue do corpo… não havia mais. O da mão, que escorria, chegava para libertar todas as mágoas, todas as histórias, todas as mutilações infligidas durante anos por bonecos de cristal danificados. Afiados como um diamante penetrante. E penetravam. De forma missal em tudo o que não era visível. Apenas sensível.

Restou o corpo inanimado de sangue pintado de cristais adornado.

Provou a mão que ficou da fúria trespassada de vitória conquistada.

Ficou na montra da loja um resquício de um tempo passado.

Guardou na cómoda a vingança sólida, fatiada e extirpada do presente…

De novo a Ousadia

De novo a ousadia, a olhar fixamente para mim. Olhos nos olhos. De forma intimidatória. De forma provocatória. A retina, redonda, profunda até à medula. A íris, reluzente e enérgica, cheia de viva. A pupila, não contraída, dilatada a emanar uma fragrância desconhecida até então. A ousadia penetrante. Invasiva que me invade a espaços regulares. Que roça e rasa por mim sem a sentir, mas sabendo-a lá. Fixa. Constante. Discreta. O ousar pensar que lhe posso resistir e fugir. Como se fosse possível… De novo, a mesma. Ousada. Usada. Sadia de querer e saber. Que ao toque e ao cheiro o galope do coração não bate: voa! Longitudinalmente. Paralelamente ao verticalismo do desejo. Ousaria negar-lhe o direito de se transformar em tentação? De impedir uma aproximação? Tentar-me-ia a sair do escuro e a tocar, não com os dedos: com a palma e com a mão, no movimento? Na ondulação? Ondulo sem náusea no pêndulo de Foucault e rodo com a Terra, de olhos fechados. Ouso sentir o seu interior. Quente. Ardente. Com lava incandescente que escorre e cria vida. Nova. Renovada. Reciclada. Cíclica de sílica. Cínica de idílica. E olhou fixamente para mim…

11 de dezembro de 2009

Ousadia

Sair da sombra do sofá! Ousar afastar a manta quente e cómoda e meter os pés no chão. Ousar sair para a rua, descalço. E correr sobre a erva fria, gelada e molhada do orvalho da noite. Escorregadia por debaixo dos pés. Mas deixá-la escorregar enquanto ainda estão quentes. Enquanto a chuva que cai não os resfria. Ter a ousadia de ousar e dar um passo em frente, mesmo de olhos vendados. Mesmo de olhos fechados. Mesmo de pulsos cerrados. Aceitar as consequências como se de um ramo de flores se tratasse. Umas mais florais que outras. Outras com mais picos que umas. E não se picar porque não se tocou. Porque não se tentou. Eles, os picos, estarão lá, na mesma. A consequência de não te ser picado… foi o não ter tido a sorte de ter sido tentado. A única tentação, foi a de nada fazer. E apenas ficar a ver. A tentação do outro lado da estrada. Do outro lado do rio. Do outro lado da vida. A inocência da descoberta. De tocar (com a ponta dos dedos). Porque se ousa. Porque se tenta. Porque se quer. A ousadia de tirar a roupa no meio da rua e gritar como um louco. A loucura ousada de sair e dar beijos e abraços a toda a gente. A sanidade louca de dizer: não. Não quero. Mais. Porque ouso ser feliz! Com toda a loucura insana da ousadia.

9 de dezembro de 2009

Ousar

v. tr. atrever-se a alguma coisa; ter a ousadia, a coragem de; empreender. (Do lat. ausu)

7 de dezembro de 2009

Com a ponta dos dedos

Dedilhando com a ponta dos dedos como que para descobrir o território. Demarcar os limites visuais com o tacto. Com a ponta dos dedos. Identificar cada falésia, cada lago, cada montanha, cada recife. Aglutinar a geografia irregular no conhecimento pleno e cego. Do tacto. Da ponta dos dedos. Tactear cada recanto escondido que visualmente não se manifesta. Doar a sensação do toque, intermitente, deslizante, instintiva como única dádiva sensitiva. Sensível. Quase invisível. Com a ponta dos dedos, aprisionar o momento numa polaroid a pionés cravada no corpo. Várias vezes. Repetidamente. No corpo. Cravada. Perscrutar o resultado na palpitação do pescoço, jugularmente. Obsessivamente. Com os lábios. Molhados. Quentes de saliva não digerida. Como a sensação. Como a ilusão. Partilhada. Pela ponta dos dedos, trocar de mão. Guiá-la pelas estrelas. Fazê-la seguir pela Estrada de Sant’iago, como os navegadores que, sem medo, ousavam. Ousar tocar com a mão... e devolver... o toque... com a ponta dos dedos.

5 de dezembro de 2009

Cheiro de quem o sente na ebulição dos estímulos olfactivos

Assim, entranhado nos mesmos cantos redondos da memória. Nos caminhos olfactivos que conduzem ao estômago estimulados a pequenas descargas eléctricas. Constantes. Persistentes. Não obedientes. Mas intensas… Lá, no estômago, onde tudo se sente. Onde tudo se recorda. Onde tudo se vive, é onde fica. O cheiro. O aroma. O perfume. O ritmo. O compasso. O astrolábio que sabe os cantos, os redondos, de cor. De olhos fechados. Com o tacto. Com o desejo. Com o vício. Com a arte. Assim, eternamente entranhados. Nas entranhas cravados, os cheiros. Os aromas. Os perfumes que nos rodeiam. Nos agarram. Nos paralisam. Nos transformam… que tanto nos deixam a contemplar as estrelas, aquelas, as da noite, quando à noite… como nos desce ao quente do Inferno, de Dante. No levante dos pensamentos. Lá, a jusante, para onde estendemos a mão, enquanto a outra, retida, guarda o estômago, para que nada fuja e tudo sinta, na ebulição dos estímulos olfactivos…

2 de dezembro de 2009

Loucura de quem a vê

Chove. Não torrencialmente. Loucamente. Daquela maneira desordenada e sem sentido que a chuva tem. Multidireccional. Opcional, à sua escolha, só sua. Desordeira. Chove ao contrário. Chove de baixo para cima. Diria mesmo que me chove em cima. Vejo as pedras a subirem em direcção ao céu tal a loucura descontrolada. Desgovernada. Desamparada. Da chuva. De quem a vê. E das pedras, que sobem sem ter onde chegar. Sem ter onde cair. Salmões sem ter onde desovar. Pedra-peixe sem ter de quem cuidar. Amar. Louca sem querer. A pedra. Louca por chover. O peixe. Louca para saber onde vai parar. A chuva. E quem a vê. E chove cada vez mais. Chove tanto aqui dentro… ainda bem que lá fora está Sol!