28 de junho de 2009

O Meu Aquário Redondo

Mergulho para dentro do meu aquário. De cabeça, com os braços esticados à minha frente. Consigo fazê-lo sem salpicar o aparador. É chato quando as gotas de água secam e mancham a madeira. É que no preto fica a notar-se ainda mais. Não preciso apertar o nariz. Sempre consegui mergulhar sem ter que o fazer. O mesmo não se passa com as cambalhotas, ficavam sempre a meio quando as fazia dentro de água (há quanto tempo não faço uma?). Talvez seja por isso que tenha optado por fazê-las nos tapetes, no chão, na cama, no sofá, no ar. Com o pino era igual, água nas vias aéreas superiores garantida. Desta vez não faço nenhuma das duas. Mergulho, daquele jeito feminino que é suposto, ligeira curvatura do ângulo, 30 graus diria, pernas e ponta dos pés alinhados e firmes. Sem salpicos. Ajeito o bikini logo de seguida, como sempre, nunca mais os fazem com cola para aderirem completamente ao corpo. Precisam sempre de uma mãozinha no após, os bikinis, acho que deve ser a forma de protestarem pelo tempo passado ao Sol. Dentro do aquário, sento-me na cama que nunca cheguei a comprar para o peixe de peluche. Aquela, de madeira, clara, pinho talvez, talhada à mão e com a pintura tradicional Portuguesa na cabeceira, não estás a ver qual é? Nunca a comprei porque nunca a encontrei com as dimensões certas para caber no meu aquário, mas sei perfeitamente qual seria, se a encontrasse. É nessa cama que me sento. Não me deito, sento-me. Fico mais vigil e alerta, assim. Não é que adormecesse se me deitasse, não agora, dantes talvez. Agora não. A cama está desarrumada e quente. O peixe deve-se ter levantado há pouco, não sei onde terá ido. Azar o dele. O espaço é demasiado pequeno para os dois, logo se vê quando ele chegar. A vista é côncava aqui de dentro. Faz sentido. O aquário é redondo. Se eu tivesse comprado um dos quadrados ou rectangulares, não veria tudo distorcido como vejo agora. Mas os aquários não se querem de outra maneira que não redondos. Não os aquários para peixes vermelhos. Não para o meu peixe vermelho. Onde é que terá ido o peixe? Na realidade, nem me lembro ao certo se o peixe é vermelho ou laranja o meu gold fish de peluche no meu aquário redondo. Ver através da água também turva a imagem. Por acaso hoje nem está suja, a água. Deve ter sido mudada há pouco tempo. Espero que as gotas para o cloro não me façam mal à vista. Sempre tive uns olhos sensíveis com tendência para conjuntivites e inflamações. Será que os peixes também metem gotas nos olhos? Eu meto. Consigo fazer barulhos estranhos. Ouvem-se? Aqui dentro o barulho fica ampliado. Também os sons ficam distorcidos, como a visão, só que é mais divertido. Knock knock knock. Sou eu a bater no vidro com a mão. Consegues ouvir, não consegues? Ponk Ponk Ponk. OK, agora era eu com a minha cabeça, tinha que descobrir se o som era o mesmo, sabes como sou, tenho que experimentar para saber... Aqui dentro é calmo. Por enquanto ainda fico sentada na cama de madeira a observar, talvez daqui a pouco vá dar uma volta, ver os cantos do aquário redondo, de certo que me deve faltar conhecer alguma coisa. Não é que tenha olhado muito para ele nos últimos tempos. Nem para o peixe (deve ter ido à casa de banho, de certeza). Há quanto tempo terei o aquário cá em casa? Estética ou capricho, tem estado sempre em cima do aparador, preto, sem que lhe tenha prestado muita atenção. Está ali qualquer coisa... será um... autocolante?! Que vergonha, é o preço! Ponk Ponk Ponk. (sou eu de novo a bater com a cabeça no vidro, só para confirmar que o som ainda é o mesmo, não se alterou. Imutável, como o aquário redondo e o peixe vermelho ou laranja? desaparecido). Possa, deixei a televisão ligada antes de ter mergulhado. E eu que agora pouca televisão vejo. Porque é que não liguei antes o rádio como faço sempre? Este barulho de fundo da televisão incomoda-me, já não me faz companhia como antigamente, como quando tinha medo de estar sozinha em casa e me escondia debaixo da mesa até que alguém chegasse. Foi esse o segundo de muitos monstros que aprendi a dominar: o barulho de uma casa vazia, a seguir a ter tratado da saúde ao monstro que vive no fundo das camas e nos come os pés se os destaparmos. Ah, ainda havia aquele que, juntamente com os insectos, podia entrar pelos meu nariz e orelhas e boca adentro enquanto dormia! Mas ainda durmo de cabeça tapada... Ponk Ponk Ponk. Aqui. Sentada na cama de madeira, dentro do meu aquário. Redondo. A esquizofrenia. Sou uma esquizo-personagem também (que fique perdoado o plágio da expressão usurpada). A bipolaridade do mergulho sem salpicos. Multipolaridade, diria antes. Entenderias se experimentasses. Mas só cá caibo eu, porventura também o peixe, se chegar a aparecer (não pode ter ido apenas à casa de banho!). Vou ficar aqui sentada. Até ver. Até me apetecer. Na minha casa e no meu aquário. Sentada até me apetecer mudar. Estática como se estivesse a olhar para a televisão que ficou acesa. Desta vez o filme é outro. Vou analisá-lo daqui de dentro, através desta perspectiva côncava, turva, distorcida como uma fotografia Lomo. Estou a ouvir um barulho...também ouves? É a porta! Estão a abrir a porta! Chiu, não faças barulho agora: o filme vai começar.

24 de junho de 2009




...
D - (...) se os vícios de uns tornam as virtudes perigosas para outros, não será prestar um serviço à juventude asfixiá-las neles logo ao nascer? Vens tu falar-me de remorso, meu amigo? Poderá existir remorso na alma daquele que em nada reconhece crime? Que os vossos princípios o sufoquem se lhe temeis o aguilhão: será possível acabardes por arrepender-vos de uma acção de cuja indiferença estejais profundamente compenetrado? A partir do momento em que não vejais mal em coisa alguma, de que mal é que podereis arrepender-vos?
C - Não é do espírito que vêm os remorsos, eles são produto apenas do coração, e jamais os sofismas da cabeça extinguiram os movimentos da alma.
D - Mas o coração engana, por nunca ser mais que a expressão dos falsos cálculos do espírito (...)
...
Marquês de Sade
in
A Filosofia na Alcova, pg 215

23 de junho de 2009

Os Sonhos reinventam-se nos Sonhos


Durmo e acordo.
Acordo e volto a adormecer.
Adormeço e acordo de novo.
Horas intermináveis em que me permito jogar este jogo, em que adio o despertar total, o verdadeiramente acordada e me deixo ficar neste espaço temporal inespecífico, irreal, sem substrato, nesta zona intermédia que separa a realidade da irrealidade e onde habita a ficção, a história, a inconsciência, o outro Eu, o sonho. E sonho. É neste limbo não delimitado que sonho ininterruptamente, que sonho até acordar de novo, para de novo adormecer. E as fantasias, as histórias, os impossíveis, os improváveis, os desejos, os ideais, as vontades, os sonhos ganham lugar.
Os sonhos reinventam-se nos sonhos.

21 de junho de 2009

Estrela Cadente


Ontem vi!
Uma Estrela Cadente!!
Em plena cidade!
Em plena varanda na cidade!
A noite estava estrelada, o céu límpido sem uma única núvem a turvar a minha visão e, de repente, o ponto brilhante, luminoso, fugitivo desapareceu. Tão depressa e tão fugaz quanto a sua aparição. Mas eu vi-o, naqueles breves segundos, terão sido dois? três? em que me concedeu a honra de o admirar, o ponto exibicionista.
Seria o Verão a chegar?
A brilhar para mim em plena noite estrelada?
A iluminar a minha mente e os meus pensamentos?
A avisar-me que não é só o meu solstício que está em erupção?
O Solstício é um ponto de mudança. Está implícita uma mudança na continuidade, marcada por um dia específico. É o início de algo. Em Junho é quando as noites começam a ficar maiores, em Dezembro os dias. É a meta e a casa de partida ao mesmo tempo. "Solstício; s. m. momento em que o Sol alcança, no movimento anual aparente, qualquer dos dois pontos da eclíptica mais afastados do equador celeste (ponto solsticial de Junho e ponto solsticial de Dezembro), e onde parece estacionar alguns dias (Lat. solstitiu)." A sua ciclicidade é o relógio sem ponteiros das estações que dividem em quatro o nosso tempo que aponta para o tempo seguinte. Quanto tempo fica estacionado? Quanto tempo nos permitimos ficar estacionamos quando em mudança? O tempo que o tempo nos dá para pensarmos no tempo que temos e no tempo queremos ter.

Vi-a, a Estrela Cadente, à uma da manhã.

O Verão só chegou às 5:45 .

E eu?

20 de junho de 2009

Subida da Temperatura

Subida da temperatura
Intersticial
Corporal
Geral

O Verão
Junho
Concretizou-se
Afinal

Quente
Calor
Suor
Sal

O tempo
Quanto tempo?
Irreal?
Real

15 de junho de 2009

Teoria da Saudade

Saudade...
Sentimento tão nosso e tão incómodo.
Desde cedo que tenho uma teoria em relação à Saudade. Segundo Eu, só temos saudades das coisas quando estas foram melhores do que aquilo que temos no momento presente, de outra maneira não se sentiria saudade. Saudades daquelas férias maravilhosas passadas naquele sitio especial, quando o que temos no agora é o trabalho do dia-a-dia; saudades daquele concerto electrizante enquanto se ouve o CD no carro; saudades daquele vestido fantástico, feito à medida, que se estragou na máquina de lavar e não havia mais nenhum igual na loja. Não temos saudades das coisas demasiado banais ou que nos causam pesar. Não se tem saudades do dia em que se apanhou uma chuvada tremenda e se ficou três dias de cama com gripe, mesmo que também esteja a chover de momento. Da mesma maneira que não se tem saudades de visitar alguém no hospital, mesmo que a pessoa se encontre de novo doente. Ou, férias de novo, não se tem saudades das férias habituais, quando é desta vez que se está no tal sítio maravilhoso e especial. É, acima de tudo, um sentimento de comparação em que a nostalgia e a mágoa ganham um lugar de destaque. Portanto, Saudade... a evitar, ponto!
E, a evitar, porque para além de ser um sentimento relacionado com o lado mais negativo do sentimentalismo, lado chato, aborrecido, que quando intenso, tem a lata de nos perseguir durante horas, dias até!, não há sentimentalismo que aguente tanta lamechice.
Imaginando que a saudade está ligada a um objecto, para simplificar apenas, esta pode ser dividida em diferentes categorias: Saudade de Ter, Saudade de Estar, Saudade de Partilhar.
Passo a explicar:
A Saudade de Ter é o superlativo do sentimento na sua conotação possessiva. Sentimento de posse, portanto. Aquilo que se quer ter como nosso, abusar, deter, possuir. É o estadio mais intenso, mais recente em termos temporais e mais obcessivo. Logo, mais difícil de ser encaminhado para o esquecimento. O objecto é a matéria prima do sentimento em si.
A Saudade de Estar, por outro lado, já é um sentimento menos intenso, o que não lhe retira qualquer mérito nesta hierarquia do Eu. Não é o sentimento de posse que aqui se encontra presente, é sim associado ao prazer de estar com o objecto, pelas característcias do mesmo, sem ter a pretenção de lhas retirar, porque não as queremos para nós (e queremos no presente, porque se fosse no passado, a terminologia Saudade já não faria sentido).
Por último, a Saudade de Partilhar, que pode ser confundida com as restante, mas não se lhe associarmos o objecto correspondente. Trata-se do sentimento de partilha do objecto. Em termos gradativos, será a saudade menos intensa, mas mais bucólica, mais romanceada.
Pode-se assim dizer que a Saudade de Partilhar se relaciona com a partilha do objecto; na Saudade de Estar o objecto é o motivo da saudade, e a Saudade de Ter é a posse do mesmo.
Portanto, apesar de tão nossa, a mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento do objecto, de nada serve para a nossa vida do que para nos fazer parar e pensar por breves momentos, convictos, mas breves, de forma a que tudo o que é o nosso presente, seja sempre melhor do que o passado.
Não era tão mais fácil se fosse sempre assim?
...
"A man who is a master of himself can end a sorrow as easily as he can invent a pleasure. I don´t want to be at the mercy of my emotions. I want to use them, to enjoy them, and to dominate them."
....
Oscar Wilde
in
"The Picture of Dorian Gray", pg 126

13 de junho de 2009

Almograve

Fecho os olhos. Vejo o Sol à minha frente, por cima de mim. Banha-me com toda a sua imponência. Empurra-me com a sua energia de encontre à areia e assim fico, indefeza, incólume, a absorver todo o seu calor, a sua força que me alimenta e me transporta. Fecho os olhos. Trio os barulhos que me rodeiam. Elimino os sons mundanos e triviais das pessoas à minha volta. Opto pela musicalidade do que me faz sonhar. O barulho do mar lá ao longe, forte e tenebroso, no auge da sua autoridade a ressoar como um trovão constante, um tenor na sua ópera, magnânime, que tudo faz vibrar. A rebentação das ondas, disritmicas, involuntárias, sequenciais. O seu permanente vai e vem, vai e vem, como o cucu de um relógio sem tempo. A espuma das ondas a desmoronarem. O resultado final da longa caminhada do mar até à costa. A sua efervescência borbulhante, não palpável, fugidia que regressa ao encontro da voz trovão. O bater das pedras umas nas outras, na corrente inversa à das ondas que buscam a areia. Pedras rolantes que embatem como uma multidão em hora de ponta e ecoam como tal, a caminho do seu destino primordial. O vento, o seu sopro audível, melodioso, arrepiante e convicto a serpentear os atritos da sua passagem, a percorrer os labirintos da vegetação envolvente que, revolta, nasceu onde lhe foi permitido, ao abrigo das intempéries. E os pássaros, que coroam o Sol e me fazem sombra nos meus olhos fechados. O seu chilrear como banda sonora daquilo que é, por breves momentos, o meu Paraíso de Verão: Almograve.

12 de junho de 2009

Despertas pelo Sol, as coisas inicíam o seu bulício de seres vivos

"Ficaram abertas as portadas da janela e o Sol acorda-me cedo. Entra pela vidraça. Começa a derreter os ramos de gelo que o frio cristalizou pelo lado de dentro. Olho esses ramos um instante. Desenham-se com curvas regulares, estampam-se nos vidros quase simetricamente. Filetes de água cortam já um ou outro, como na chapa de uma gravura que se destrói. Despertas pelo Sol, as coisas iniciam o seu bulício de seres vivos."

Vergílio Ferreira "Aparição" pg 139

11 de junho de 2009

Voar e Nadar

(...) A sensação de voar deve ser, aliás, é-o com toda a certeza, só o pode ser, uma das melhores sensações que se pode ter. A sorte que algumas pessoas têm de voar durante os sonhos é algo incomparável, sublime que apenas se pode ter a pretenção de imaginar e invejar. Imagino, de início, a subida. Sei-o! O salto numa cama elástica tem esse poder: de nos elevar até um pouco mais perto do céu. Sei-o e sinto-o. Fecho os olhos... a inspiração inicial, primordial, profunda, a contracção muscular, subtil, natural, praticamente inata. Começa nos dedos dos pés, esticados, firmes e antagonistas das subida, passa para os pés e já está nas pernas, coxas, nádegas, abdómen, pescoço e, por último, os braços que se elevam em abdução sincronizada até ao infinito. Imagino-o em câmara lenta. A elevação a par com a entrada de oxigénio nos alvéolos, o seu preenchimento como se de hélio se tratasse e, ao chegar "lá a cima", lá continuar. Imagino-o de olhos fechados, sempre. Sinto o vento a roçar no corpo, a descompor os cabelos. Imagino-me a tropeçar nele, o vento. Encaracolo-me, lentamente, como se eu fosse uma núvem, entrelaço-me, rodopio, danço, encolho-me, estico-me e flutuo nessa minha irrealidade volátil. A partir desse momento, é uma águia que voa. Voa veloz, célere, altiva, imponente e majestosa. Abre as asas e desce a pique, voo rasante, perturbante e volta a subir a seu bel´prazer. Sorrio, riu às gargalhadas, incontrolavelmente, num misto de felicidade, irrealidade e nervosismo. É assim que sou nos dois mundos. É esta capacidade de voar de olhos fechados, de rodopiar em câmara lenta com as farófias doces da minha imaginação que me permite olhar para mim e para os outros, os demais, os que estão a mais, com uma outra lente, como se de personagens se tratassem, me tratasse. Não se trata de ser mais imparcial ou objectiva ou acertada, É apenas olhar o mundo de uma outra maneira, mais abrangente e periférica. Nadar é similar! Nada deve lavar melhor os pensamentos maus e sujos e impróprios e desnecessários e dolorosos do que nadar. Nadar numa piscina a descoberto em plena madrugada, rodeada apenas da presença minimalista da luz da lua e das estrelas, cercada de verde escuro natureza. E nadar. Simplesmente nadar, sem perder as forças ou o fôlego ou a capacidade de chegar mais além. Nadar para a frente e para trás. Estibordo e bombordo. Norte e Sul, qual máquina de escrever, e flutuar, tal como no voo, em reticências, de braços abertos, pernas esticadas, na completa hipotonia, e ficar, flutuar e ficar, até ser possível. São as duas formas sem terra, mas com os pés assentes nela, que procuro e invejo. As duas a que permitiria o rapto do real e o transporte para uma outra dimensão. Voar e nadar...

Fisiologia da Paixão e do Amor

(...) Quantos órgãos estão ligados directamente à Paixão e ao Amor? O Coração impreterivelmente, porque sim, porque é praticamente genético. Porque bombeia todo o sentimento corpo fora. Transforma o sangue em Desejo e Necessidade e flui-o por todos os capilares, para avisar que o corpo foi dominado, foi tomado por uma vontade alheia com vida própria, sem regulador externo, só impulsionador. E é por isso que o Coração é o órgão major do Amor. Sim, porque quem sente é o Estômago, daquela forma involuntária, espontânea, repentina e fugaz. É o estômago que dói. É nele que se espetam agulhas, ferrões de abelha, picos de rosas e cactus, enquanto as borboletas coreografam o seu bailado contemporâneo. São um clássico as borboletas, que na sua passagem breve pelo Estômago avisam o Cérebro que o Coração transformou o sangue. São elas o mensageiro (que morre sempre por trazer a notícia) que diz ao Cérebro que já não precisa reunir as tropas, porque o castelo não lhe pertence mais. Estivesse mais atento, mais vigil. O papel dele, a sua função protectora deveria ter sido exercida antes do Coração ter terminado a primeira bombeadela. Antes dos eritrócitos terem passado da aurícula para o ventrículo. Não interferiu no funcionamento natural, geológico da válvula, qual barragem a evitar o sangue em demasia. Devia tê-lo feito. Assim, por culpa do Cérebro adormecido, anestesiado pelo prazer hediondo, o Desejo e a Necessidade, não só percorrem o corpo penetrando em cada célula, como dominaram o espaço intersticial dos Pulmões. São eles os próximos. Os que trabalham mais neste jogo do foge-que-eu-já-te-apanhei-aqui-estás-será-que-estou? Peito em estado de latência. Energia cinética não contida. Suspiros. Um, dois, muitos. Descontrolados. Respiração intermitente. Quase parada, na dúvida, no medo, no receio, na surpresa. Polipneica quando em contacto com os elementos. Ruidosa quando trabalhada, excitada, violada, atestada, disfarçada. É nela, na respiração, que se projectam os sentimentos, que se espelham as emoções e que se traduz em quantidade de Dióxido de Carbono a intensidade da Paixão e do Amor. Balões se enchessem com cada suspiro, com cada inspiração profunda, por ausência, por excesso, por necessidade, por prazer, por deleite, por libido. É por eles que voamos quando apaixonados. Por causa do Cérebro que não controla o Coração que derrama o Desejo e a Necessidade pelo corpo fora, perfurando cada órgão sem dó nem piedade, mas rezando por perfurações mais profundas, penetrações mais geodésicas, até que, nem a Alma, com toda a sua imaterialidade, se pode proteger. É a Alma contaminada com todos os resquícios que o corpo não soube evitar, que vai espalhar ao mundo, que mais um pirilampo se iluminou na noite escura em que tendemos a viver, como se assim fosse mais fácil. Como se a escuridão fosse a substituta barata da luminosidade natural, bela e resplandescente. É a imatéria, que não se vê, não se sente, não se sabe, que mostra aos ventos que a engrenagem está toda a funcionar e que funciona mesmo. É ela o gerador que leva o calor ao próximo, aos outros. É a imatéria que nos faz parecer especiais (se já não o formos), que nos faz contagiar o mundo com tudo o que de melhor temos. É a Alma iluminada e transformada que, por causa dos impulsos, desejos e necessidades do Cérebro que inflamou o Coração e incendiou o corpo nos seus locais mais recônditos e desprotegidos, nos informa, a Nós, sujeitos passivos, que Amamos com a Loucura de toda a nossa Paixão.